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Khayzuran tem uma história que vai da miséria à riqueza, da escravidão à soberania. Nascida no sudoeste da península Arábica em meados do século VIII, pouco mais de 100 anos após a morte do Profeta Maomé, ela foi raptada por mercadores de escravos ainda na infância. Em algum momento entre 758 e 765, foi vendida em Meca a ninguém menos que o próprio fundador de Bagdá, o califa Abássida al-Mansur, que a presenteou a seu filho e sucessor, al-Mahdi.
Com al-Mahdi, Khayzuran teve uma filha e dois filhos, sendo que estes se tornaram califas, um deles o célebre Harun al-Rashid. À época de sua morte, em 789, ela obtinha uma receita anual de 160 milhões de dirhams, o que equivalia a praticamente metade de toda a receita do Estado, de acordo com al-Masudi, o historiador do século X. Sua riqueza pessoal a tornou "incontestavelmente, depois [de seu filho, o califa Harun al-Rashid], a pessoa mais rica do mundo muçulmano de sua época", observa a historiadora Nabia Abbott, autora de Duas rainhas de Bagdá: mãe e esposa de Harun al-Rashid (Two Queens of Baghdad: Mother and Wife of Harun al-Rashid), um trabalho precursor dos estudos sobre as mulheres do Oriente Médio.
O caminho de Khayzuran até o poder político, como o de tantas outras mulheres durante o longo período que precedeu os atuais Estados nacionais, foi percorrido através dos haram reais, ou aposentos femininos. Favorita de al-Mahdi, ela gozou de um nível de confiança que rivalizava, e pode ter até mesmo superado, o de Rita, primeira esposa e prima de al-Mahdi, e cujas origens haviam sido completamente diferentes das de Khayuran: membro da família real, Rita era filha de Abu Abbas Abdullah, fundador do Império Abássida.
Uma breve menção na monumental obra do século IX História dos profetas e reis (History of the Prophets and Kings), escrita por al-Tabari, demonstra a consideração que al-Mahdi tinha por sua primeira-dama do haram: "Neste ano [775], al-Mahdi alforriou sua menina escrava […] al-Khayzuran e com ela se casou". Em uma época em que califas costumavam se casar com integrantes da aristocracia, elevar Khayzuran à condição de rainha era "uma arrojada ruptura das convenções", observou o historiador moderno Hugh Kennedy.
E não é de surpreender que crônicas árabes medievais indiquem que isso gerou intrigas na corte: as damas nascidas na aristocracia Abássida zombavam da presença de Khayzuran. No entanto, os registros contam que ela se desviava desse esnobismo com elegância cordial. Embora a história não forneça nenhuma evidência de tensão direta entre Rita e Khayzuran, o fato de os filhos desta – Musa al-Hadi e Harun al-Rashid – terem sido nomeados herdeiros do califado enquanto os filhos da primeira sequer foram considerados indica o "reconhecimento tácito [de Rita] de que seria inútil desafiar" Khayzuran, especula Abbott.
Descrita, segundo Abbot, como "esguia e elegante como um junco" (khayzuran é o termo árabe para "junco"), ela raramente dependia apenas de sua beleza para obter sucesso. Era inteligente, capaz de citar poesias com desenvoltura, e seu conhecimento do Corão, dos hadith (provérbios do Profeta Maomé) e da legislação era comparável ao dos grandes estudiosos.
Dizem que ela também gostava de brincar e compartilhava o senso de humor de al-Mahdi, como zombar em momentos privados dos rompantes de temperamento do califa al-Mansur. Mas quando o assunto era governar, ela dava máxima prioridade aos negócios: "No início do califado [de seu primeiro filho al-Hadi], al-Khayzuran costumava exercer sua autoridade sobre todas as questões dele sem consultá-lo em nada […] assumindo total controle sobre questões de ordens e proibições, da mesma forma como havia feito com seu pai", observa al-Tabari sobre a ascensão de al-Hadi após a morte de al-Mahdi em 785.
O novo califa se irritava com o caráter dominador de sua mãe, provavelmente porque al-Hadi não correspondia às expectativas de Khayzuran, ou talvez por ele ter ressentimentos da preferência de longa data que ela mantinha por seu irmão mais novo, Harun al-Rashid. A discórdia não durou muito tempo: al-Hadi morreu no ano seguinte (circularam rumores de que Khayzuran mandou envenená-lo, mas não há nenhum registro confiável que confirme essa informação). Harun al-Rashid se tornou califa de um império que se estendia do Marrocos à Pérsia e marcou o início do apogeu da era Abássida. Quando sua mãe morreu, em 789, o califa demonstrou profundo sofrimento e devoção ajudando a carregar seu esquife com os pés descalços sobre a lama.
Os relatos não detalham as conquistas políticas de Khayzuran, mas em seu nome foram cunhadas moedas e erguido palácios, e o cemitério onde passaram a descansar os governantes Abássidas subsequentes também levava seu nome, o que demonstra não só status, mas também generosidade cívica. Ela transmitiu esse senso de dever cívico especialmente a Amat al-Aziz, conhecida na história pelo não lisonjeiro mas sonoro nome de Zubayda.
Zubayda era ao mesmo tempo sobrinha e, após seu casamento com Harun al-Rashid, nora de Khayzuran. Foi seu avô al-Mansur que, sem dúvida, demonstrou afeto ao apelidá-la de Zubayda (que significa "pequena bola de manteiga") "por conta de sua forma volumosa" quando criança, de acordo com o biógrafo do século XIII Ibn Khalikhan.
Quando adulta, menciona o cronista, sua "caridade era ampla e a conduta, virtuosa". Ele acrescenta que, em seus aposentos, uma centena de meninas escravas possuía a tarefa de memorizar o Corão, recitando uma décima parte dele diariamente "para que em seu palácio ressoasse um sussurro contínuo, como de abelhas".
Nascida em meio ao extremo luxo do Império Abássida em seu momento mais glorioso, Zubayda desenvolveu rapidamente gostos extravagantes. Segundo o Livro de presentes e raridades (Book of Gifts and Rarities), uma espécie de crônica de celebridades daquela época escrita no século XI por al-Zubayr, os gastos com seu casamento, "algo que nunca […] havia sido visto em tempos [islâmicos]", chegaram a 50 milhões de dinares. (como parâmetro de comparação, o custo de vida anual de uma família média em Bagdá girava em torno de 240 dinares). Durante o evento, a noiva vestiu um colete incrustado com rubis e pérolas "cujo valor não poderia ser mensurado"; os convidados receberam como presente dinares de ouro em tigelas de prata e dinares de prata em tigelas de ouro.
Uma definidora de tendências de alto estilo, Zubayda foi a "primeira a introduzir a moda de chinelos bordados com pedras preciosas e de velas feitas de âmbar-cinzento, costumes que foram disseminados e adotados pelo público", de acordo com al-Masudi. Em ocasiões oficiais, foi dito, ela "mal podia caminhar sob o peso de suas joias e vestidos", precisando ser amparada por criados.
Mas seus gastos em obras públicas não foram menos suntuosos, em nome de sua duradoura notoriedade. Zubayda fez ao menos cinco peregrinações a Meca; e foi na quinta vez, em 805, que se angustiou ao ver que a seca havia dizimado a população e reduzido o poço sagrado de Zamzam a um mero gotejamento. Ela ordenou que o poço fosse aprofundado e gastou cerca de dois milhões de dinares ampliando o fornecimento de água de Meca e da província à sua volta.
Isso incluiu a construção de um aqueduto a partir da nascente de Hunayn, 95 quilômetros a leste, além do famoso "Manancial de Zubayda" na planície de Arafat, um dos locais rituais do Hajj. Segundo Ibn Khalikhan, quando os engenheiros a advertiram sobre as despesas e dificuldades técnicas envolvidas, ela respondeu que estava determinada a dar andamento à obra, "ainda que cada golpe de picareta custasse um dinar".
Além de Meca, ela financiou um dos maiores projetos de obra pública de sua época: a construção de uma darb (estrada) de 1.500 quilômetros de extensão desde Kufa, ao sul de Bagdá, até Meca, repleta de estações de água a distâncias regulares e faróis de fogo sobre colinas para orientar os viajantes à noite. Seu historiador contemporâneo al-Azraqi declara que "o povo de Meca e os peregrinos devem [a Zubayda] toda sua vida, depois de Deus", e os clamores de peregrinos de "Deus abençoe Zubayda" ecoaram por gerações ao longo da via, que até hoje se chama Darb Zubayda. (o caminho caiu em desuso quando os peregrinos passaram a optar por viagens de trem, automóvel ou avião no lugar de caravanas de camelo).
Em uma decisão pessoalmente dolorosa tomada em 813, Zubayda colocou os interesses do Estado acima do próprio sangue ao apoiar a ascensão de seu enteado al-Ma'mun a califa quando seu filho, o então califa al-Amin, tornou-se intoleravelmente corrupto. Seus instintos estavam certos, e o homem culto al-Ma'mun provou ser um governante justo e erudito, tendo fundado a Bayt al-Hikma (Casa da Sabedoria), famoso "think tank" de Bagdá que se tornou um centro de tradução para o árabe de textos gregos, romanos e outros clássicos que não só ilustraram o meio intelectual Abássida, como acabariam por se tornar a base da Renascença europeia.
Zubayda faleceu em 831, mas sua reputação como mulher influente sobreviveu tanto na história como na literatura. Seu marido, Harun al-Rashid, tornou-se o califa protagonista da coleção europeia de alf layla wa layla (1001 noites), e a própria Zubayda foi a inspiração na vida real para a tão fictícia Scheherazade.
Direção de arte da série "Malika": Ana Carreño Leyva; caligrafia: Soraya Syed; logotipos gráficos: Mukhtar Sanders (www.inspiraldesign.com).
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A nomeação havia sido um presente ao general de 41 anos dado por seu primo, o sultão Solimão i ("o Magnífico"), que considerava Husrev-beg (rus-rev-bei; o sufixo beg é um título honorífico, semelhante ao britânico "Sir") um dos mais confiáveis oficiais militares e diplomatas.
O novo governador provavelmente entrou em Sarajevo cruzando uma ponte de pedra sobre o Miljacka, bem a leste de Careva Džamija (ou Mesquita do Sultão), entre as primeiras estruturas construídas por seu antecessor e fundador de Sarajevo, Isa-Beg Ishaković (i-cha-co-vitch). Vindo logo a seguir, empacotados em carroças carregadas com seus pertences, estavam muitos livros e manuscritos de Husrev-beg, alguns dos quais ele acabou legando à posteridade. Com o passar do tempo, seu legado cresceria a ponto de se tornar a maior biblioteca de manuscritos e documentos islâmicos dos Bálcãs, a mais ampla coleção de manuscritos otomanos fora da Turquia e uma das maiores bibliotecas de seu tipo de toda a Europa.
Cerca de cinco séculos mais tarde, em 1992, Mustafa Jahić, então diretor da biblioteca e mais recente na linha de estudiosos a quem Husrev-beg havia confiado seu legado, aproximou-se cautelosamente da extremidade sul da famosa ponte juntamente com alguns colegas. Levando caixas com o precioso acervo da biblioteca próximo a seus corações, em sentido literal e figurado, eles calculavam as chances que tinham de atravessar o rio vivos. Nos edifícios e colinas à sua volta, franco-atiradores sérvios esperavam para exercitar sua pontaria em qualquer um que se expusesse nas vias públicas, que viriam a ser conhecidas durante o cerco de Sarajevo de 1992 a 1995 como "becos dos atiradores". Se isso acontecesse novamente, eles tomariam a mesma atitude. E novamente, ao longo dos próximos três anos, por toda a cidade sitiada.
Jahić e seus colegas assumiram aquele risco para preservar parte do patrimônio cultural sobrevivente de sua cidade e recém-declarado país. Estabelecido em março de 1992 após a ruptura da multiétnica Iugoslávia, a Bósnia e Hezergovina se transformou quase imediatamente em um campo de batalha. Em Sarajevo, as populações bósnia muçulmana e croata católica se tornaram alvo de nacionalistas sérvios ortodoxos apoiados pela vizinha Sérvia. Além de ter matado cerca de 14 mil pessoas em Sarajevo – 5.400 delas civis – a milícia sérvia também atacou sistematicamente a identidade cultural da Bósnia: em agosto de 1992, a Biblioteca Nacional e o Instituto Oriental, as duas maiores bibliotecas de Sarajevo, foram reduzidas a cinzas.
Jahić estava determinado a salvar o legado de Gazi Husrev-beg desse mesmo destino. Com a ajuda de outros que compartilhavam de sua devoção à biblioteca e seu compromisso com a história cultural da Bósnia, o dedicado bibliotecário liderou o transporte de grande parte do acervo de um esconderijo a outro por toda a guerra até que, em 2014, as obras finalmente pudessem ser guardadas em um edifício totalmente novo e seguro, localizado a alguns passos do local da biblioteca original fundada por Gazi Husrev-beg.
Esta é a história dos dois, um homem que considerava livros e conhecimento legados essenciais e outro que arriscou sua vida para preservá-los.
No ano em que Gazi Husrev-beg assumiu como governador, Sarajevo era classificada nos registros otomanos como uma kasaba, o que significa que era maior do que uma aldeia, mas menor que uma šeher, ou cidade. Fundada por Ishaković por volta de 1462, ela se localizava nos limites do reino medieval bósnio de Vhrbosna, conquistado pelos otomanos uma década antes. Embora contasse com o abrigo das montanhas à sua volta e tivesse um bom abastecimento de água graças ao Miljacka, a cidade era ao mesmo tempo potencialmente vulnerável a agressores, que podiam escalar aquelas mesmas montanhas para cercar o vilarejo situado em um vale. Além disso, sua localização estratégica, a uma distância de marcha das "fronteiras movediças do império com Veneza e a monarquia dos Habsburgo", conforme observou o historiador Robert J. Donia, tornava-a um centro comercial, administrativo e militar cada vez mais importante para a expansão otomana rumo à "Rumélia", os Bálcãs.
A cidade recebeu seu nome depois que a saraj (sar-eie, ou corte real) foi construída por Ishaković às margens sul do rio e perto de um grande ovaši (o-va-chi, ou campo); portanto, Sarajevo é uma contração eslava de Sarajovaši. O fundador construiu também uma fortaleza sobre um afloramento rochoso a leste, o portão natural da cidade onde o Miljacka esculpe seu leito por entre as montanhas. As ruínas que restam dessa fortaleza de pedra, juntamente com as posteriores defesas otomanas, ainda pontuam as montanhas arborizadas da cidade como dentes quebrados.
Foi Gazi Husrev-beg quem, ao longo de 20 anos, ajudou Sarajevo a tornar-se uma šeher. Esse foi um trabalho feito sob medida para um general diplomata de meia idade. Nascido em 1480 na cidade grega de Serres, Husrev-beg era filho de Ferhad-bey, governador otomano local nascido na Bósnia, com a sultana turca Selçuka, filha do sultão Beyazid ii. As conexões reais de sua mãe o tornaram o primeiro primo do sultão Solimão, o Magnífico. Durante o período em que governou a eyalet (província) da Bósnia, território que hoje equivaleria aproximadamente à Bósnia e Herzegovina, Sarajevo cresceu a ponto de tornar-se a terceira maior cidade europeia do império, logo após Tessalônica e Edirne. Esse período foi chamado de "Idade Dourada" de Sarajevo.
Com a transformação da capital provincial em uma "expressão da civilização otomana", segundo palavras de Donia, Husrev-beg empregou o plano urbano básico do império para sua ampliação: dividir a cidade em bairros residenciais, chamados mahalas, com uma casa de culto no centro de cada um deles. Antes da chegada de Husrev-beg, Sarajevo tinha somente 3 mahalas muçulmanas; sob sua administração, esse número se elevou para 50. No início do século XVII, havia cerca de 100, juntamente com uma pequena quantidade de mahalas cristãs e judias em uma cidade indiscutivelmente inter-religiosa.
O coração da atividade comercial e cultural de Sarajevo era o Baščaršija (bach-char-si-ia, ou mercado) bem a norte do rio. Tanto Ishaković como Husrev-beg construíram bezistans (bazares cobertos) nesse local que, ainda nos dias atuais, continua sendo a área de pedestres mais popular da cidade. Mantendo muito do estilo de sua época otomana, o Baščaršija oferece de tudo a seus exploradores, desde coletes com temas do futebol bósnio até tapetes persas, além de novidades posteriores ao cerco, como canetas esferográficas elaboradas com cartuchos de balas recolhidos das ruas. Com cinco quarteirões de extensão, o bezistan de Gazi Husrev-beg é o maior de todos.
Em épocas otomanas, mercadores viajantes se hospedavam em hans, também chamados de karavan-saraj (hospedaria). Essencialmente hotéis de negócios, eles possuíam pátios centrais utilizados como áreas de descarga e estábulo para animais, e quartos na parte superior, onde os comerciantes tinham direito a refeições e alojamento grátis por até três dias. Muitos hans sobrevivem hoje como restaurantes, entre eles o colorido Morica Han, construído por Husrev-beg. No pátio arborizado do han, os turistas de hoje em dia bebem chá, leite ou café bósnio de cor bege, e batem papo com os tranquilos comerciantes de tapete ou cerâmica que trabalham nos estábulos hoje transformados da estrutura histórica.
A maior parte das instituições culturais, econômicas e religiosas da cidade, suas mahalas, mesquitas e hans, recebeu apoio de doações beneficentes conhecidas como vakuf, uma adaptação bósnia do árabe waqf. Os vakufs foram financiados por ricos patronos, muitos deles oficiais militares de alta patente como Husrev-beg, que reuniram fortunas (alguns diriam saques de guerra) após anos de campanha. Dentre todos os vakufs da Bósnia, o de Husrev-beg era o mais rico e abrangente. Além de mahalas, hans e bezistans, o governador financiou a construção de um hammam (banho público), um imaret (cozinha de sopas), um haniqah (um centro de estudos sufi) e uma madraça (escola religiosa muçulmana) à qual chamou Seljuklia, em homenagem ao nome de sua mãe (como seu telhado era feito de chumbo, kuršum em turco, a madraça tornou-se conhecida localmente como Kuršumlija e continua sendo a mais antiga ainda existente da Bósnia e Herzegovina).
No centro de tudo, Husrev-beg construiu uma mesquita que hoje leva seu nome. Elegante com seu minarete fino, telhado com diversas cúpulas e uma torre de relógio, essa é a maior mesquita histórica do país, famosa por ser o exemplo mais refinado da arquitetura islâmica otomana nos Bálcãs. Erguendo-se no coração do Baščaršija, ela permanece como um símbolo da cidade e ponto de encontro para a comunidade muçulmana de Sarajevo – na verdade, de todo o país – que representa cerca de 40% da população nacional atual (seguida de 31% de cristãos ortodoxos e 15% de católicos).
Portanto, foi durante a administração de Husrev-beg que Sarajevo se tornou um reflexo urbano da crença do governador na perene virtude do vakuf.
Tendo esses princípios em mente, em 1537, Husrev-beg decretou na escritura da escola que "todo o dinheiro restante dos gastos com a construção será empregado para comprar bons livros, que serão utilizados na mencionada madraça e por todos aqueles envolvidos no estudo, os quais lerão e transcreverão tais obras".
Os livros comprados nesses termos, juntamente com os manuscritos doados por Husrev-beg, compuseram a biblioteca no momento de sua fundação, cujo acervo cresceu rapidamente. Entre sua coleção cada vez mais notável, encontravam-se conhecidas obras de filosofia, lógica, filologia, história, geografia, línguas orientais, literatura clássica, medicina, veterinária, matemática, astronomia e muitos outros campos de conhecimento. Algumas foram doadas (inclusive bibliotecas privadas inteiras), e muitas foram transcritas, sob determinação de Husrev-beg, por copistas que trabalhavam nos aposentos caiados da madraça e haniqah. Enquanto isso, a poucos metros de distância, na Mudželiti (muz-rel-i-ti) (ou Rua dos Encadernadores), o que surgiu na década de 1530 como um grupo de pequenas lojas de encadernação floresceu até se tornar um bazar completo de livreiros, refletindo o crescimento de Sarajevo como um dos mais férteis centros literários e intelectuais de todo o Império Otomano.
"Nesses complexos religiosos, era muito raro que houvesse somente uma mesquita. Geralmente, eram erguidas diversas construções, e algumas delas tinham, desde seu primeiro momento, um propósito educacional", observou Ahmed Zildžić, estudioso do Instituto Bósnio, um centro de pesquisas para o estudo do passado cultural da Bósnia e Hezergovina sediado no belo e restaurado hammam de Gazi Husrev-beg, hoje com novas funções. "Havia então uma biblioteca lateral ou um pequeno maktab (escritório), algo semelhante a uma escola dominical [cristã], com a função de alfabetizar os eslavos convertidos ao Islã que, depois, passavam a se alfabetizar também em línguas orientais", comentou.
Aproveitando-se ao máximo dos longínquos recursos provenientes da Pax Ottomana, alguns desses jovens e promissores estudiosos se espalharam por todo o império para estudar em seus famosos centros de conhecimento: Istambul, Damasco, Beirute, Cairo, Bagdá, Meca, Medina e tantas outras cidades. De volta à Bósnia, eles levavam consigo mais livros e manuscritos em árabe, turco otomano e persa, e todos enriqueciam ainda mais o patrimônio literário do país e suas bibliotecas, inclusive a de Gazi Husrev-beg. Os livros e manuscritos também eram adquiridos por comércio ou levados por pessoas que concluíam o Hajj, a peregrinação a Meca. Muitas dessas obras importadas foram traduzidas para o bósnio, ainda que os estudiosos locais começassem a produzir cada vez mais de seu próprio estudo islâmico bósnio: tratados e dissertações sobre filologia árabe, direito islâmico, o Corão, entre muitos outros, compostos em seus três idiomas nativos. E à medida que se ampliava esse corpus, crescia também a reputação de Sarajevo como um repositório da cultura bósnia e "um dos mais importantes centros culturais e de estudo da Rumélia", acrescentou Zildžić.
Certamente, 1992 não foi a primeira vez que esses tesouros literários estiveram sob ameaça. Abrindo seu caminho até a Bósnia em 1697, o príncipe Eugênio de Saboia da Casa dos Habsburgo prometeu "destruir tudo a fogo e espada", incluindo Sarajevo, a não ser que a ele se rendessem. Fiel à sua palavra, e conforme registrou em seu diário militar, "[n]ós deixamos a cidade e toda a área a seu redor em chamas". Esses "infiéis austríacos", como relatou um anônimo de Sarajevo, pareciam especialmente decididos a destruir as instituições islâmicas da cidade: "[E]les queimaram livros e mesquitas, assolaram mihrabs [nichos de oração nas mesquitas] e a bela Šeher-Sarajevo, de ponta a ponta".
No final do século XIX, um incêndio arrasou muitas das construções da cidade, limpando literalmente o caminho para que arquitetos alemães remodelassem Sarajevo à imagem do Império Austro-Húngaro durante sua dominação de quase 33 anos, iniciada em 1885 sob o imperador Franz Joseph i (uma exceção a essa estética modernista precoce foi a prefeitura da cidade, concluída em 1894 em estilo neomourisco e que, mais tarde, viria a se tornar a Biblioteca Nacional).
Mais famoso que a queima de livros desse período foi o assassinato – em 28 de junho de 1914 à base da Ponte Latina, poucos metros a oeste da Ponte do Imperador – do arquiduque da Áustria Francisco Fernando e sua esposa Sofia, duquesa de Hohenberg. O incidente foi o estopim para a Primeira Guerra Mundial, que ironicamente poupou Sarajevo. Mas a cidade não teve a mesma sorte durante a Segunda Guerra, quando foi bombardeada tanto pelo exército alemão como pelos Aliados.
Apesar de tudo, a Biblioteca Gazi Husrev-beg continuou crescendo, a ponto de precisar mudar de local para expandir-se por duas ocasiões antes da Segunda Guerra Mundial. A primeira mudança ocorreu em 1863, para uma sala construída com essa finalidade do outro lado da rua, à base do minarete da Mesquita Gazi Husrev-beg. Em 1935, o acervo superou novamente o espaço da biblioteca, que foi transferida para o porão do escritório do mufti (estudioso islâmico mais proeminente da cidade) de Sarajevo, localizado na outra margem do rio e próximo à Mesquita do Sultão. Finalmente, o mufti desocupou todo o edifício de seu escritório para acomodar a crescente coleção.
No início dos anos 1990, a Biblioteca Gazi Husrev-beg se tornou uma das mais valiosas dos Bálcãs, com cerca de 10 mil manuscritos em árabe, persa, turco otomano e eslavo bósnio de escritos árabes, conhecidos como arebica ou aljamiado. Seu manuscrito mais antigo e precioso é uma cópia de Ihya'ulum al-din (O renascimento da ciência religiosa), obra escrita em 1105 por al-Ghazali. Outro tesouro é Tufhat al-ahrar (O presente ao nobre), uma poesia didática do autor clássico persa do século XV Nur al-Din ‘Abd al-Rahman, elaborado com caligrafia excepcionalmente bela em Meca, no ano 1575. Igualmente significativas são as cópias com encadernação decorativa do Corão que residem na biblioteca, as quais serviram de modelo para copistas. Muitos desses volumes produzidos com grande beleza possuem capas de couro em relevo, páginas ricamente adornadas com caligrafia e bordas decorativas em cores índigo, dourada e vermelho-tijolo.
Entre seus 25 mil livros estão as mais antigas obras impressas (desde meados do século XVIII) por alguns dos autores mais prolíficos em línguas orientais, além dos mais antigos em idioma bósnio e vários dos primeiros livros produzidos pelo autor de origem húngara Ibrahim Müteferrika que, de 1674 a 1745, se tornou o primeiro muçulmano a operar uma imprensa com tipos móveis em árabe. A coleção de periódicos da biblioteca inclui os mais antigos jornais da Bósnia, além de praticamente todos os jornais e periódicos muçulmanos publicados no país, atuais e históricos, incluindo um conjunto quase completo de Bosna, o antigo diário oficial da eyalet, publicado de 1866 a 1878. Além disso, há cerca de 5 mil firmans (decretos reais) e berats (alvarás e licenças) otomanos; registros da corte sharia local conhecidos como sijjils; defters (registros fiscais); e também fotografias, panfletos e cartazes.
"Livros censitários, livros fiscais, registros governamentais: são todos fontes indispensáveis para quem deseja estudar a história de qualquer grupo religioso ou étnico dos Bálcãs, e não apenas muçulmanos", comentou Zildžić.
Como acréscimo a esse conjunto de valor incalculável, antes da Guerra da Bósnia, havia as coleções da Biblioteca Nacional e da Biblioteca da Universidade da Bósnia e Herzegovina, perto da antiga prefeitura e do Instituto Oriental, fundado em 1950. Juntas, essas duas instituições possuíam aproximadamente 2 milhões de volumes, 300 mil documentos originais e 5.263 códices (coleções encadernadas de manuscritos). Juntamente com a Biblioteca Gazi Husrev-beg, todo esse precioso acervo, o corpo, se não a alma, do patrimônio cultural e intelectual da Bósnia, concentra-se em alguns poucos quilômetros quadrados da cidade, pronto para ser atacado. Ciente dessa vulnerabilidade, Jahić moveu preventivamente o acervo de Gazi Husrev-beg dos escritórios do mufti para o outro lado do rio ao seu lar original, a Kuršumlija, onde acreditava que os livros estariam mais seguros.
E sua decisão demonstrou ser bastante prudente. Na noite de 16 de maio de 1992, foram iniciados os ataques a poucos quarteirões da Mesquita do Sultão.
O bombardeio do Instituto Oriental marcou a abertura de uma guerra não só contra pessoas, mas também contra seus pensamentos, ideias e identidade cultural. Em busca de criar um Estado unificado e monoétnico a partir dos escombros da Iugoslávia pós-comunista, os nacionalistas sérvios estavam determinados a varrer do mapa da Bósnia e Hezergovina a cultura bósnia e croata.
O cerco de Sarajevo, que durou três anos, viria a se tornar o mais duradouro cerco a uma capital na história da guerra moderna. Fincando posições nas montanhas ao redor, os sérvios atacaram Sarajevo noite e dia. Durante os intervalos entre bombardeios, os atiradores observavam e esperavam para alvejar pedestres que surgissem do caos, desesperados por comida, água e combustível. Cartazes com os dizeres Pazite, Snajper! ("Cuidado, atiradores!") estavam por toda parte, como verdadeiros papéis de parede. Dessa forma, em meio ao esforço decidido da agressão sérvia em erradicar toda uma cultura, os alvos principais de assassinato eram os professores universitários de filosofia, juntamente com a destruição de seus escritos e aqueles de seus antecessores. "O cerco de Sarajevo" – observou o acadêmico bósnio András J. Riedlmayer uma década depois do conflito – "resultou no que pode ser o maior incidente único de queima deliberada de livros da história moderna".
Na manhã de 17 de maio daquele mesmo ano, enquanto o Instituto Oriental ainda ardia em chamas, a ex-diretora Lejla Gazič correu para o local com a esperança de salvar o que pudesse, mas os bombeiros a impediram. O edifício não só estava instável, mas continuava sendo um alvo, uma vez que os sérvios seguiam atirando nos homens que combatiam o incêndio. Relembrando aquele terrível dia, Gazič ainda não consegue compreender completamente aquele episódio.
"Pessoas matam pessoas em guerras, isso eu posso entender", disse. "Mas assassinar livros é algo inimaginável. Os livros são um patrimônio que pertence a todos, em qualquer lugar. Como alguém é capaz de matá-los?".
No entanto, o inimaginável ficou ainda pior. Três meses mais tarde, Gazič e seus colegas de Sarajevo assistiram novamente horrorizados, uma hora depois do anoitecer de 25 de agosto, às forças sérvias destruírem a Biblioteca Nacional com um ataque de bombas de fósforo. Como já haviam feito durante a destruição do Instituto Oriental, os combatentes sérvios localizados nas colinas "salpicaram a área em torno da biblioteca com tiros de metralhadora, tentando assim impedir que os bombeiros combatessem o fogo", de acordo com o repórter da Associated Press John Pomfret, que esteve presente no episódio. Porém, enfrentando bravamente o fogo de franco-atiradores, bibliotecários e cidadãos voluntários formaram uma corrente humana e moveram todos os livros que puderam coletar do edifício em chamas. Mas quando o calor explodiu as finas colunas mouriscas da estrutura e o telhado veio abaixo, passou a ser tarde demais: o valioso acervo da biblioteca tinha se perdido.
"A luz do sol foi obstruída pela fumaça produzida pelos livros, e por toda a cidade papel queimado, frágeis páginas em cinzas, flutuavam como uma neve negra e suja", relembrou mais tarde um bibliotecário. "Ao agarrar uma daquelas páginas, era possível sentir o calor e, por um momento, ler um fragmento do texto em um estranho tipo de negativo em preto e cinza, até que o calor se dissipasse e a página se desfizesse em pó sobre a sua mão."
Indagado por Pomfret por que ele arriscou sua vida contra todas as probabilidades, o chefe da brigada de incêndio Kenan Slinič – "suado, coberto de fuligem e a menos de dois metros do incêndio" – respondeu: "Porque eu nasci aqui, e eles estão queimando uma parte de mim".
Jahić compreendeu essa intensa devoção. Com 38 anos de idade quando começou a guerra, ele já ocupava o cargo de diretor da Biblioteca Gazi Husrev-beg por cinco anos quando o cerco teve início. Durante essa verdadeira provação, Jahić cumpriu rigorosamente seu dever indo e voltando todos os dias da semana entre as paixões de sua vida: sua esposa e filhos, e a biblioteca. Aquele era um deslocamento muito perigoso. Sua casa ficava a apenas 500 metros das linhas sérvias, e sua família era forçada a se esconder no porão durante a maior parte do dia. Para reduzir o risco de ser alvejado por atiradores ao longo de seu trajeto diário de sete quilômetros, ele serpenteava entre as sepulturas do cemitério, agachando-se para obter proteção atrás das largas e planas lápides dos setores cristãos, que forneciam melhor cobertura do que as finas lápides muçulmanas.
Comprometido com seu trabalho e em prosseguir com uma vida normal como pudesse considerando as circunstâncias, Jahić manteve o máximo possível o acervo da biblioteca disponível a estudiosos. No entanto, ele tinha consciência de que o sérvios sabiam onde ela estava, o que o fez mover as obras de lugar. Após a destruição do Instituto Oriental e da Biblioteca Nacional, ele teve a certeza de que deveria manter o acervo em movimento se quisesse poupá-lo do mesmo destino.
"Eu sabia que os sérvios estavam determinados a destruir completamente o patrimônio cultural da Bósnia", explicou Jahić. "Assim, para que o inimigo não soubesse o local da biblioteca, fiz contato com amigos e outros bibliotecários, e consegui a ajuda deles para transportar o acervo de um local a outro durante toda a guerra."
De 1992 a 1994, Jahić e seus fiéis e dedicados colegas – entre eles um voluntário da equipe de limpeza e um guarda noturno da biblioteca – moveram o acervo oito vezes no total, mudando sua localização a cada cinco ou seis meses. Durante o conflito, ele depositou os itens mais valiosos, como a obra de al-Ghazali e outros manuscritos raros, no cofre do banco Privredna, localizado perto do centro da cidade. Mas a maior parte do acervo foi transportado manualmente de um lugar a outro, geralmente dentro de caixas de banana, por ele e seus companheiros, como estudantes universitários entrando e saindo de um dormitório.
O primeiro esconderijo foi o local original da biblioteca, a Kuršumlija. Em seguida veio uma mudança para um local vizinho, a maior e "nova" madraça, construída durante o período austro-húngaro. A mudança dos livros entre esses locais, para o outro lado do rio sobre a Ponte do Imperador, foi considerada por Jahić uma das mais perigosas de todas.
"Esta ponte era um alvo fácil para os atiradores situados ali em Trebević", disse posicionado no meio da ponte e olhando para o elevado rochoso.
Em seguida, um fluxo de refugiados provenientes de áreas próximas que solicitavam abrigo na madraça forçou Jahić a mover novamente as obras para o interior úmido do antigo quartel do corpo de bombeiros, onde definharam por vários meses em um campo de tiro subterrâneo e fora de uso, um cenário difícil de ser imaginado como ideal para guardar livros raros. Mas ele sabia que deveria empregar todos os recursos disponíveis para manter-se um passo adiante da milícia sérvia. Duas outras mudanças se seguiram em 1993: para os camarins do Teatro Nacional e, depois, para as salas de aula da madraça feminina, não muito distante do quartel de bombeiros. Jahić pensava o tempo todo à frente das intenções de seus inimigos.
Ainda que a biblioteca parecesse estar relativamente segura naquele momento, ele percebeu que poderia ser incendiada a qualquer instante. Assim, para garantir seu conteúdo intelectual e também físico, começou a microfilmar integralmente seu acervo. Por si só, esse já parecia um projeto monumental, mesmo com todo o prazo do mundo, mas Jahić ainda teve de lidar com interrupções no fornecimento de eletricidade e a falta de água corrente para o processamento dos filmes. Além disso, não havia nenhum equipamento realmente apropriado, e ele não sabia como isso funcionaria depois que alcançasse seu intento. Como se não fosse o bastante, tudo foi feito sob o fogo inimigo. Um bibliotecário mas fraco poderia ter vacilado ou nem mesmo começado. Mas Jahić, enérgico e criativo, compreendeu plenamente o que estava em jogo e, como muitos insurgentes antes dele, recorreu aos subterrâneos.
"Providenciamos equipamentos de microfilme por contrabando através do túnel", disse, referindo-se ao túnel de 700 metros escavado à mão sob o aeroporto de Sarajevo. Durante a guerra, essa estreita passagem de um metro por um metro que ligava uma garagem particular ao subúrbio de Dobrinja, provou ser vital para o transporte de comida e suprimentos aos 400 mil habitantes sitiados de Sarajevo e forneceu a única rota de fuga da cidade.
Com a ajuda de um técnico local de microfilmagem e sua equipe contratada, Jahić começou a fotografar o melhor que podia. Apesar de todas as dificuldades, a equipe pôde microfilmar 2.000 manuscritos durante o conflito.
"Isso foi um problema, porque havia apagões frequentes. Assim, usamos baterias de automóveis para fornecer energia sempre que faltasse eletricidade", relembrou. A água de que precisavam foi extraída do Miljacka. Mas os recursos tornavam-se cada vez mais escassos.
"Comida, água e madeira. Essas eram as três coisas mais importantes durante o cerco", disse Jahić, relembrando que luxos como as prateleiras de madeira da biblioteca estavam entre os primeiros itens retirados pela população como lenha durante a crise, seguidas das árvores de todos os parques da cidade, que se transformaram em vastos campos vazios de tocos cortados.
À esquerda: os trabalhos de restauração de um documento no laboratório de preservação de livros da biblioteca, parte do complexo bibliotecário ampliado de nove milhões de dólares, que ressurgiu como fênix após o cerco para ser inaugurado no ano passado. À direita: as obras exibidas incluem este fac-símile do manuscrito mais antigo da biblioteca, O renascimento da ciência religiosa, obra de 1105 escrita por al-Ghazali.
O deslocamento das obras era arriscado não só devido aos franco-atiradores. Em uma ocasião, enquanto percorriam as ruas bombardeadas com suas caixas de banana repletas de livros, Jahić e sua equipe se depararam com um bando de jovens. A gangue os abordou, pensando estar diante de uma carga de bananas, um luxo extravagante em um período em que itens básicos como pão eram um prêmio.
"Mas quando eles olharam dentro daquelas caixas e viram que havia somente livros, jogaram-nas no chão e seguiram seu caminho", relembrou.
Certamente, nem Jahić nem sua equipe tinham em mente participar de confrontos com gangues de rua. Mas como os bombeiros que travaram suas batalhas perdidas contra edifícios em chamas, eles viram que estavam desempenhando não só um dever patriótico, mas sua obrigação perante a humanidade.
"Claro que valia a pena arriscar a minha vida por isso", afirmou mais tarde o guarda noturno da biblioteca Abbas Lutumba Husein aos produtores do documentário da BBC de 2012 "O amor pelos livros: uma história de Sarajevo" ("The Love of Books: A Sarajevo Story"). Um imigrante nascido no Congo, onde cresceu cercado de violência e conflito, Husein disse que sua vida havia sido transformada pela leitura do Corão. Durante seu trabalho noturno na biblioteca, ele buscava conforto na leitura dos livros, sentindo a presença de seus autores e sentindo-se em paz entre eles. A biblioteca "salvou a minha vida", declarou. Ele concluiu dizendo que teria preferido "morrer junto com os livros do que viver sem eles".
Em 1995, quando o cerco foi encerrado, a biblioteca retornou à madraça feminina, e Jahić continuou realizando o trabalho de digitalização, microfilmagem e catalogação de todo o seu conteúdo para preservá-lo e evitar que pudesse voltar a ser ameaçado. A catalogação foi concluída em 2013 e publicada com o apoio da Fundação do Legado Islâmico de al-Furqan, com sede em Londres. Agora, os itens mais importantes do acervo da biblioteca estão completamente digitalizados.
No início da década de 1990, já era discutida a criação de um novo edifício para abrigar o continuamente crescente acervo da biblioteca, mas o projeto teve de ser postergado devido à guerra. Finalmente, foi contratado um arquiteto (veja o quadro lateral acima) e, em 2014, foi aberta a nova Biblioteca Gazi Husrev-beg, graças a uma grande doação do governo do Catar. A estrutura resplandecente de três andares de vidro e mármore, bem em frente ao local da biblioteca original, hospeda 500 mil volumes, salas de leitura, uma sala de conservação e um auditório de 200 lugares com fones de ouvido conectados por internet sem fio em cada assento para receber tradução simultânea em até três idiomas. No porão, há também um museu dedicado à história literária da Bósnia.
Contudo, no coração da estrutura de alta tecnologia estão os livros, todos eles referidos por Jahić – hoje um professor residente – como seus próprio filhos.
"Durante a guerra, tentei salvar tanto a minha família como a biblioteca", comentou. "Durante o processo, passei a amar os livros. É difícil para mim falar sobre eles agora sem sentir uma grande emoção."
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Algumas semanas depois, a Galeria Al-Quds em Washington, D.C., pediu que eu considerasse desenvolver o trabalho para uma exposição individual. Durante a conversa, mencionei a possibilidade de uma mostra centrada nas histórias verídicas do meu pai, que culminavam com sua chegada aos EUA. Eu disse à galeria que imaginava uma série de pinturas, cada uma baseada nessas histórias com estilo inspirado na famosa série de Jacob Lawrence, "A Migração do Negro" ("The Migration of the Negro").”
A galeria adorou a ideia, mas eu tive então de pedir a autorização do meu pai, e essa tarefa acabou não sendo tão fácil. Nascido em 1927 na cidade de Damasco, ele se mudou em 1933 para a Beirute, no Líbano, embora tenha retornado diversas vezes à sua cidade natal para visitar a família. Aos 19 anos de idade, em 1946, meus avós o trouxeram com eles para os EUA.
Inicialmente, meu pai rejeitou meu pedido, explicando que se tratavam de histórias privadas da família. Minha mãe disse que conversaria com ele. Cerca de uma hora depois, meu pai concordou, ainda que de forma relutante, em escrever suas histórias.
Por diversas vezes, eu ia à casa dos meus pais em Alexandria, no estado norte-americano da Virgínia, e me sentava à mesa da cozinha enquanto meu pai me mostrava um novo relato em que estava trabalhando. Os contos não eram longos, e a cada um ele adicionava um pouco mais de detalhes. Isso enriqueceu minhas pinturas, além de ter permitido uma intimidade especial durante aquelas conversas. Eu valorizo muito aquela época.
Continuamos por vários anos, uma história aqui e outra ali, até termos 24 histórias. Depois disso, ele disse aquela era a última.
Até hoje desejo que ele mude de ideia.
—Helen Zughaib
Quando Jiddu contou esta história ao meu pai, ele a introduziu dizendo que seu pai havia lhe contado e que ele nunca a deveria esquecer; e foi também dessa forma que meu pai a transmitiu para mim.
Havia uma vez um amir (príncipe) que possuía um cavalo tão forte e belo que era conhecido por toda a região. Outros amirs o invejavam e tentavam comprar o animal, mas o proprietário recusava todas as propostas. Vender o cavalo, ele dizia, seria como vender um membro de sua própria família.
Um dia, um trapaceiro abordou um dos amirs invejosos e lhe ofereceu roubar o cavalo em troca de um pagamento. O negócio foi fechado.
O ladrão esperou ao lado da estrada onde o amir e seu maravilhoso cavalo passavam todos os dias. Quando o amir se aproximou, o vigarista começou a chorar e se lamentar. O amir parou para perguntar-lhe o porquê, e o homem respondeu que estava muito doente, precisava de um médico e não tinha forças sequer para montar no cavalo. O amir desceu do animal para ajudá-lo e, assim que o outro se sentou na sela, saiu a galope.
A vítima gritou: "Pare, e o cavalo será seu". O ladrão parou e voltou, com a certeza de que o amir jamais descumpriria com sua palavra. "Não diga a ninguém que você roubou esse cavalo", pediu o amir. "Diga que eu lhe dei. Faça isso para que a caridade e a compaixão nunca desapareçam de nossa comunidade".
Minha irmã e eu adorávamos visitar a casa do Jiddu e da Teta nas montanhas durante o verão. Tínhamos liberdade para brincar no jardim, fazer novos amigos e passear na mula do Jiddu. Mas os melhores dias eram aqueles em que passávamos no kroum (vinhedo). Tínhamos de sair de casa bem cedo pela manhã porque Jiddu insistia que as uvas e os figos deveriam ser colhidos ainda com orvalho em sua superfície.
Para colher os figos, Jiddu e eu subíamos na figueira, enchíamos o cesto de figos maduros e o baixávamos para entregá-lo a Teta e minha irmã. Elas espalhavam as frutas sobre lençóis, achatavam-nas e, em seguida, cobriam-nas com uma gaze para protegê-las da poeira e de insetos. Depois de aproximadamente dez dias sob o sol quente, os figos estavam secos e prontos para ser armazenados para o inverno.
Fazer passas, contudo, era mais complicado. Teta levava os cachos de uva e os dispunha de forma ordenada em lençóis brancos cobertos com palha. Minha irmã sempre queria que as fileiras de uvas fossem separadas por cor, formando longas listas roxas, pretas e brancas uniformes. Teta fazia a vontade dela, mesmo sabendo que todas seriam misturadas quando secas. Depois que as uvas estavam alinhadas como queria a minha irmã, Teta as borrifava: ela usava ramos de ervas chamados tayyoun – que cresciam naturalmente nas encostas adjacentes ao vinhedo – imersos em uma mistura que preparava com cinzas, água e outros ingredientes, e agitava o líquido sobre as uvas.
Voltávamos todos os dias aos vinhedos para ver como estavam as passas e os figos secos, e para umedecer as uvas. Quando chegava a hora de voltar para casa, levávamos sempre conosco algumas frutas secas e novas histórias para contar a nossos amigos na cidade.
Visitar Jiddu e Teta em seu vilarejo na montanha era sempre um prazer. Teta preparava doces especiais e o meu prato preferido. Mas o melhor de tudo era quando Jiddu me levava ao campo. Geralmente, era uma viagem rápida só para ver como as plantas estavam crescendo, mas às vezes, ele me pedia para atuar como "ajudante do Jiddu", auxiliando-o com pequenas tarefas. Durante uma visita, ele me disse que plantaríamos oliveiras. Como ficaríamos no campo de oliveiras durante todo o dia, tínhamos de levar conosco um zuwaidy (piquenique), água e outros mantimentos.
Na manhã seguinte, Jiddu e eu nos preparamos para ir ao campo muito mais cedo que o habitual, acompanhados de uma mula que carregava mantimentos e mudas de oliveira. Trabalhamos duro plantando as mudas em sulcos que Jiddu já havia cavado. Meu trabalho era manter a planta reta enquanto ele cavava um pequeno buraco para cada muda. Depois, eu jogava um pouco de água de um tambor sobre cada nova oliveira.
Durante nossa pausa para o almoço, eu disse a Jiddu que voltaria no ano seguinte para ajudá-lo a colher as azeitonas. Ele sorriu e disse que isso seria difícil, porque as oliveiras levam muitos e muitos anos até gerar frutos. Desapontado, eu lhe perguntei por que estávamos nos preocupando em plantar oliveiras se já estaríamos mortos quando elas dessem azeitonas. Ele me olhou com uma expressão séria e disse: "Zara'u fa akalna, nazra'u fa ya'kulun"” ("Eles plantaram para que pudéssemos comer; nós plantamos para que nossos descendentes comam").
Muito antes de o cinema ou a televisão entreter as crianças libanesas, havia a sanduk al-firji. Era uma caixa semicircular decorada de forma brilhante e que um artista itinerante levava amarrada às suas costas. Ele aparecia no vilarejo entoando bem alto a prévia de suas histórias, indo de hara em hara (rua em rua) até terminar na praça principal.
Primeiro, ele desamarrava o sanduk. Ela tinha cerca de 45 centímetros de altura e cinco ou seis "janelas" de vidro separadas umas das outras a uma distância regular. Em cada extremidade da caixa, havia duas pequenas hastes internas presas a um rolo com imagens bem brilhantes que contavam uma ou mais fabulosas histórias árabes, como "Antar and Abla" ou "Abu Zayd al-Hilali".”
O artista colocava a caixa sobre uma base e armava um banco circular à sua frente. As crianças do vilarejo revezavam-se entregando seu kharjiyyi, dinheiro para despesas, e em grupos de cinco ou seis, olhavam dentro da caixa e assistiam à história através de suas pequenas aberturas. O apresentador rolava a tela, cantando sobre a beleza das mulheres, a coragem dos homens e a força de seus cavalos. Geralmente, aqueles espectadores mais afortunados cediam seus lugares a irmãos ou amigos que não tivessem kharjiyyi suficiente.
Quando todos aqueles que queriam assistir à apresentação já estivessem satisfeitos, o artista amarrava a caixa de espetáculos à suas costas, recolhia a base e o banco, e seguia para o vilarejo seguinte, entoando prévias de suas histórias e seduzindo novos espectadores.
Para mim, era impressionante naquela época como ele sincronizava a história com as imagens exibidas na tela rolante. E a caixa em si, a linda sanduk com suas imagens coloridas e muitos pequenos espelhos, era uma fonte de maravilhas, mesmo sem as histórias.
Antigamente, o único abastecimento de água do vilarejo era a fonte comunitária. Jovens mulheres, as sabaya, caminhavam à fonte no horário do pôr do sol, equilibrando jarros de água grandes e coloridos sobre suas cabeças. Com o tempo, esse percurso para buscar água se tornou um evento social muito esperado, conhecido como mishwar (caminhada).
Na fonte, as sabaya exibiam seus finos vestidos, conversavam e faziam fofocas. Os homens jovens do vilarejo, os shabbab, também iam até a fonte no mesmo horário para observar e flertar de forma inocente com aquelas jovens mulheres. Ocasionalmente, um homem ou uma mulher jovem reunia coragem suficiente para dizer uma ou duas palavras a alguém especial.
Com o passar do tempo, as mishwar permaneceram como um costume aceito, e os jovens do vilarejo continuavam a fazer suas caminhadas no fim da tarde, tendo ou não água corrente em suas casas. As sabaya e os shabbab se encontravam, admiravam e flertavam a uma distância segura.
Na Síria e no Líbano, basara é um dos jogos de baralho mais simples e fáceis. Os mais velhos da família ensinam aos mais jovens como jogá-lo. Quando todos os demais recursos não funcionavam e um adulto queria que as crianças ficassem tranquilas e longe de problemas, a solução era jogar basara.
Minha avó, Teta, não fugia a essa regra. Quando o clima não permitia que brincássemos do lado de fora, Teta sugeria um jogo de basara. Algumas vezes, nós mesmos o sugeríamos, sabendo que comeríamos algo gostoso ao final das partidas.
Teta se sentava sobre o tapete de seu quarto e fazíamos um círculo à sua volta. Ela geralmente distribuía as cartas, mas às vezes, para nos agradar, perguntava se algum de nós queria distribuí-las em seu lugar.
Adorávamos jogar basara com a Teta. Ela desconsiderava as pequenas trapaças e garantia que algum de nós sempre ganhasse. Para nós, Teta parecia muito velha. Naquela época, não conhecíamos ninguém mais velho. Sua cabeça era envolta por um colorido lenço adornado com miçangas, seu mendeel. Teta vestia várias saias, uma sobre a outra, com um avental em cores vivas por cima. Ficávamos fascinados com suas saias. Sob duas ou três delas, Teta tinha uma bolsa de pano feita em casa, dikki, amarrada ao redor de sua cintura com uma faixa. Nessa bolsa, ela mantinha alguns trocados e chaves. Uma chave, a que mais nos interessava, abria um pequeno guarda-louça de madeira em seu quarto, no qual ela guardava biscoitos e doces. Outra chave abria uma grande caixa de madeira laqueada, onde ela mantinha seus pertences mais finos e preciosos, além de algum dinheiro de maior valor.
Depois do jogo, começávamos a importunar Teta pedindo que ela nos mostrasse o que tinha em seu guarda-louça. Quando algum pedido indireto para ver o interior do pequeno e desejado armário não tinha sucesso, surgia um apelo conjunto por doces. No geral e de várias formas, este apelo costumava funcionar, e os doces apareciam e eram distribuídos. Quando não havia muitos doces, eram distribuídos uns trocados, o que chamávamos de nigl.
Todo verão, eu passava várias semanas na casa dos meus avós em Zahle, um vilarejo libanês localizado nas montanhas. A melhor parte da visita era uma viagem que Jiddu e eu fazíamos ao kroum, ou vinhedo. Lá, passávamos uma semana trabalhando, conversando e compartilhando alguns momentos juntos. Durante o dia, nós dois trabalhávamos no campo. Ele me dizia o que fazer e explicava por que as coisas eram feitas de determinada maneira. Jiddu não passava o dia todo falando só comigo; ele também falava com as árvores e videiras, como se fossem pessoas que vinham nos visitar. De alguma forma, o kroum se tornou entrelaçado à família, uma parte da comunidade.
Enquanto trabalhávamos, ele me dizia que uma certa árvore havia sido plantada na época em que nasceu o tio Jamil, outra quando a tia Wadi'a se casou. Cada lugar e cada planta do vinhedo estavam vinculados a algo. Às vezes, relacionavam-se com eventos nacionais ou mundiais, mas a maioria das conexões tinha a ver com eventos familiares. Os campos e o kroum se tornaram um diário da história da família, que ele estava transmitindo a mim.
Jiddu também tinha muito conhecimento sobre as plantas e ervas silvestres que cresciam na região do kroum. "Esta é boa para curar resfriado", dizia. "Esta serve para dor de estômago, e esta é um ótimo tempero para ensopado." Nós colhíamos muitas daquelas ervas e flores, e as secávamos para usar no inverno.
Toda noite depois do jantar, Jiddu acendia sua lamparina de querosene, preparava algum chá sobre o fogo de carvão e, em seguida, começava a contar histórias sobre a nossa família. Ele falava sobre aqueles que tinham se mudado para o exterior, quem tinha se saído bem ou não; a boa ovelha e a ovelha negra. Depois, se não estivesse cansado, começava a recitar poesias ou contar histórias que costumavam ter uma lição de moral. Ele nunca pregou para mim, mas garantia sempre que eu captasse a mensagem.
Mais do que qualquer outra coisa, Jiddu adorava recitar poesias, tanto quanto escutar alguém recitá-las. Às vezes ele me pedia para recitar poemas que eu havia aprendido na escola. Por mais que me esforçasse, nunca conseguia satisfazer seu desejo de escutar um poema depois do outro.
Uma vez, quando eu tinha mais ou menos 13 anos, ele me pediu para recitar, mas eu só conseguia me lembrar de uma poesia e uma parte de outra. Quando eu parei, ele apagou a lamparina e foi dormir. Na próxima noite, ele pediu que eu recitasse mais poesias. Eu repeti a mesma da noite anterior. Jiddu reclamou, dizendo que aquele era o mesmo texto que eu já havia recitado. Eu confessei que era tudo o que sabia. Jiddu olhou para mim por algum tempo antes de dizer que, se depois de oito anos na escola, tudo o que eu conseguia me lembrar era de um poema e meio, eu estava perdendo o meu tempo e o dinheiro dos meus pais, e que seria melhor se eu deixasse a escola e começasse a trabalhar.
Depois disso, Jiddu nunca mais me pediu para recitar nada, embora continuasse a me contar histórias e ensinando-me sobre várias plantas no vinhedo. No entanto, a poesia nunca mais voltou à nossa vida no kroum.
Esse ritual era uma rotina matinal que nunca variava. Crescemos com a impressão de que nós, os netos, não deveríamos interferir nas atividades da manhã.
Geralmente, seis ou sete mulheres mais velhas, todas viúvas, se reuniam na casa da minha avó. Durante o outono, a primavera e o verão, o encontro ocorria no pátio ao redor da fonte de água; já no inverno, seu local mudava para a sala de estar em volta do braseiro de carvão. Preparavam-se dois ou três argillas (narguilés), e o tabaco aromatizado era misturado e umedecido. Eu adorava o cheiro do tabaco sendo preparado, pois ele costumava ser misturado com melado de alfarroba ou uva. O aroma me dava vontade de comer um sanduíche de melado com tahini, que chamávamos de arouss, a mesma palavra para denominar casamento.
As mulheres começavam a chegar por volta das dez horas. Elas nunca batiam à porta, que estava sempre aberta de qualquer forma. Minha avó se sentava no lugar habitual, e cada mulher se acomodava em seu mesmo lugar de sempre. Todas elas vestiam o mesmo: tannouras (saias longas) pretas sobre várias anáguas, presas à cintura com uma faixa. Na parte de cima, usavam um casaco preto sobre um colete bordado, e um mendeel azul claro ou cinza cobria seus cabelos. Ele era amarrado de modo faceiro em diagonal, uma prática herdada de seus dias de juventude.
Depois que as mulheres chegavam, geralmente alguns minutos entre uma e outra, minha avó dava início ao ritual do café. Os grãos eram depositados no mahmassi, uma pequena panela de aço com um cabo longo para impedir que se queimasse a mão ao segurá-la. Lentamente torrados, eles eram mexidos com uma colher de cabo igualmente longo até que minha avó determinasse que haviam atingido a coloração certa. Os grãos eram então despejados sobre uma bandeja para esfriar e, depois, uma das mulheres os passava pelo mathani (moedor de café). Quando minha avó achava que já havia café suficiente acumulado na pequena gaveta de madeira do mathani, colocava o pó em uma panela com água fervendo sobre o braseiro e começava a mexer. No momento em que o café ameaçava transbordar, ela retirava a panela rapidamente do calor, revolvia um pouco seu conteúdo e a retornava para o fogo. Esse processo se repetia três vezes e, na segunda vez, eram adicionadas algumas colheres de chá de açúcar. O café era servido em pequenas xícaras, e a conversa começava.
O que me impressionava naquele tempo – e continua me impressionando até hoje – era que suas histórias eram sempre as mesmas, contadas a cada dia pelas mesmas mulheres e, ainda assim, elas nunca pareciam se cansar de contá-las ou ouvi-las. As histórias se passavam quase sempre na época de algum evento importante de que todas elas pareciam se lembrar, como uma enchente, seca, epidemia ou revolução. Elas recordavam seus aniversários da mesma forma, quase sempre como a época de algum evento calamitoso. Minha avó nasceu durante a tawshi (revolução) de 1865. Depois de alguns desses eventos serem mencionados, havia um coro de "tinthaker ma tin 'aad" ("que isso seja recordado, mas nunca repetido").
Quando menino, ainda vivendo em Bab al-Mussalla no Midan, bairro antigo de Damasco, eu me lembro de ser fascinado pelos diversos mascates que circulavam pelas ruas estreitas anunciando em forma de canto seus produtos e serviços. Vendedores de frutas, legumes e doces, amoladores de faca, podadores e compradores de objetos velhos… Todos enchiam o ar com suas melodias. Esses cânticos em rima nunca mencionavam de fato o nome do item oferecido, mas descreviam em detalhes sua cor, frescor e sabor. Os clientes sabiam pelos cânticos tradicionais qual era o artigo vendido, o que também determinaria o menu do dia. As ruas ficavam lotadas de mulas de carga, carrinhos de mão e vendedores que transportavam grandes sddur (tabuleiros) repletos de bolos e outras delícias.
As crianças que brincavam na rua ou estavam a caminho da escola ficavam atentas especialmente aos vendedores de doces. Em sua maioria, os doces eram sazonais. Cozidos, doces de beterraba e pipoca fumegantes eram vendidos no inverno. O gelo com calda, chamado de sweeq, aparecia no verão. Kaak e manaquish eram oferecidos durante o ano todo, enquanto o tamari com melado era vendido apenas em dias de festa. Invariavelmente, a mesada do dia era trocada por um kaak com za'atar (pão com especiarias e azeite), um tamari ou um punhado de hanblas, uma saborosa fruta que pode ser levada no bolso sem se danificar. Os doces costumavam ser compartilhados ou trocados com outras crianças, ampliando dessa forma o poder de compra da mesada diária.
Eu me lembro que o mascate mais interessante era o Hallab que cantava sobre seu leite fresco. Ele tinha um pequeno rebanho de oito a dez cabras damascenas. Em sua maioria, os animais eram marrons, grandes e dóceis, e possuíam dois cordões presos a seu pescoço. As crianças menores se aproximavam das cabras para acariciá-las e abraçá-las no caminho para a escola. O Hallab não se importava com isso, e tanto os animais como as crianças adoravam a atenção.
O vendedor carregava um balde, uma lata de medida e uma longa vara de bambu. Quando alguma dona de casa abria sua porta e pedia leite, ele ordenhava uma de suas cabras bem à sua frente. Se a mulher estivesse planejando fazer coalhada naquele dia, poderia pedir mais leite. Caso alguma cabra começasse a se desgarrar, o Hallab a guiava gentilmente de volta ao rebanho. Depois que o leite fresco era entregue e o Hallab era pago, ele continuava seu caminho, cantando sobre suas belas cabras.
Os demais vendedores não podiam competir com o Hallab, seu maravilhoso rebanho e o prazer de acariciar aqueles animais gentis e amáveis. Eu me lembro que, depois de a versão em pó ter surgido nas prateleiras das mercearias, o leite nunca mais teve o mesmo sabor.
Antigamente, as crianças nasciam em casa com a assistência de uma parteira. Essa era uma ocasião em que os membros femininos da família participavam ativamente. Elas ajudavam a parteira incentivando a nova mãe a "morder um lenço" para parar de gritar e dizendo "sa'adi waladik", que até certo ponto, significa o equivalente a "empurre".” Elas também preparavam café, chá, zhurat e yansoon, bebidas servidas aos visitantes que se reuniam para participar ou apenas satisfazer sua curiosidade.
Assim que nascia a criança, a parteira concluía seus deveres profissionais comunicando ao pai e aos homens da família o parto bem-sucedido e o sexo do bebê. Esse era o momento de pagar e dar gorjetas à mulher. O tamanho da gorjeta dependia se a família desejava ter um menino ou uma menina, e se esse desejo havia sido satisfeito.
Depois que a parteira ia embora, a nova mãe se vestia com um enfeitado penhoar de seda, e o bebê era completamente envolto em um tecido igualmente adornado. O novo pai entrava no quarto e, dependendo de sua situação financeira, colocava alguma joia sobre o travesseiro da mãe e uma ou mais moedas de ouro no berço do bebê.
No quarto da mãe, começaria o zalagheet, um tipo de cântico reservado a dias de festa ou outras ocasiões especiais. Ele era conduzido pela avó até que todos os vizinhos e familiares se unissem à canção.
Por 40 dias, a mãe permanecia na cama sendo mimada e servida, trocando de penhoar de seda várias vezes, conforme as possibilidades econômicas de seu marido. Os vizinhos, familiares e amigos apareciam para felicitar os pais, atualizar as fofocas e dar conselhos não solicitados. Durante esse período, era servido um prato chamado mughly aos convidados, uma mistura de especiarias, arroz em pó e açúcar.
O mughly era seguido de snaniyyi, oferecido quando nascia o primeiro dente do bebê. O snaniyyi é feito de trigo cozido, açúcar, carnes adocicadas e doces muito coloridos. Ele costuma ser servido em uma pilha bem alta sobre uma bandeja com maward e mazahar (flores e água de rosas) polvilhadas e borrifadas no topo. É uma bela visão, além de ser uma delícia.
Para proteger-se contra o mau-olhado e outros infortúnios, contas azuis, pequenos ícones e hijabs eram presos à roupa e ao berço do bebê. As contas azuis e as mãos de Fátima resguardavam a criança contra o mau-olhado, enquanto hijabs, amuletos e talismãs a protegiam contra enfermidades, micróbios e outras calamidades. O hijab é um pequeno pacote triangular costurado que esconde um talismã ou uma prece escrita com poderes espirituais de proteger a criança. Quando o bebê cresce, o hijab pode ser costurado dentro da camiseta, mantendo assim seus poderes de proteção. O hijab nunca deve ser aberto ou desrespeitado de nenhuma forma.
Um dia, meu pai e eu estávamos conversando sobre tudo e nada em particular, quando ele me disse que iria ao Dayr Saydnaya no dia seguinte e que eu poderia acompanhá-lo se quisesse.
O Dayr era um convento nos arredores de Damasco e a instituição de caridade favorita do meu pai. Eu aceitei com prazer seu convite, pois aquela era uma viagem que eu adorava fazer.
Ele me perguntou qual era a minha concepção de caridade. Eu respondi dizendo que as pessoas apreciam as boas ações porque elas suprem suas necessidades especiais. Ele então me perguntou sobre a caridade cega, quando o doador não conhece a pessoa que se beneficia e não faz ideia de qual seja a necessidade dela. Ele continuou contando-me uma história que ilustrava esse tipo de caridade, que descrevia como a mais sincera de todas.
Havia uma mulher muito rica, a esposa do governador de uma próspera cidade. Uma vez por semana, ela preparava um grande cesto e o selava com alcatrão para torná-lo à prova d'água. No fundo do cesto, escrevia a linha de um poema: "Realize ações de caridade mesmo que elas possam parecer sem propósito, pois nenhum ato fica sem recompensa". Em seguida, ela enchia o cesto com alimentos, água e roupas, e o deixava no mar para que fosse levado pelas ondas e pelo vento a algum lugar distante.
Certa vez, ela e sua família fizeram uma longa viagem de barco para visitar parentes em outra cidade portuária. Uma forte tempestade destruiu o barco, e muitos a bordo se afogaram. Ela também teria se afogado caso não tivesse se agarrado a uma tábua de madeira. A mulher ficou à deriva por algum tempo até alcançar a costa, completamente faminta, com sede e exausta.
Ela acordou no jardim de alguém. A dona da casa lhe contou que os criados a haviam encontrado na praia e pensaram que estava morta, mas depois perceberam que ainda estava viva e a levaram para o jardim. A senhora disse que ela poderia permanecer com eles como lavadeira, oferta que foi aceita de bom grado.
Um dia, a senhora levou um grande cesto de bambu cheio de roupas e pediu à mulher que as lavasse. Quando a mulher avistou o fundo do cesto, viu a linha do poema que ela mesma escrevia nos cestos que preparava antes de soltá-los no mar. Ela reconheceu seu próprio cesto, sentou-se e começou a chorar.
Quando a senhora da casa chegou para verificar as roupas lavadas, encontrou a mulher soluçando. Ao perguntar por que chorava, a lavadeira lhe explicou que o cesto era um dos que preparava, e começou a descrever como ela os enchia com mantimentos e os largava ao mar pensando que náufragos os encontrariam e usariam para sobreviver da fome e da sede.
A senhora ficou impressionada e lhe contou que, certa vez, ela e seu marido naufragaram. Eles perderam tudo o que tinham. De repente, apareceu um grande cesto, ao qual se agarraram até se aproximarem do litoral. Quando recobraram seus sentidos, caminharam até a cidade, encontraram trabalho e, com o tempo, prosperaram. Por sentimentalismo, ela o manteve em uso, pensando que algum dia descobriria mais sobre o cesto e a linha do poema em seu fundo, o qual faz louvor à caridade cega.
A senhora levou a lavadeira a seus próprios aposentos e, quando seu marido voltou para casa, lhe contou o que havia acontecido. Ele sugeriu que a mulher vivesse com eles como membro da família. Além disso, eles decidiram continuar enchendo cestos com mantimentos e deixando-os no mar, na esperança de que, um dia, alguém necessitado sobrevivesse graças a algum deles.
Depois de uma longa espera, a permissão para viajar para a América havia finalmente sido concedida. Foram feitas reservas em um navio de Beirute à Nova York, confirmando assim a data da partida e iniciaram as despedidas no vilarejo. Parentes, amigos e vizinhos apareciam para tomar café e contar histórias sobre outros que haviam emigrado.
Finalmente, dois dias antes da partida, toda a família viajou a Beirute para se hospedar em um hotel e realizar suas despedidas finais. Minha mãe não podia acreditar que finalmente estava emigrando com sua família para a América. Ela reuniu todos os passaportes, passagens e o que tinha de joias e dinheiro em uma bolsa especial, que mantinha com ela até mesmo enquanto dormia.
Além disso, ela tinha de ter a certeza de que as malas preparadas com presentes para seus parentes na América estavam em segurança. Um grande tapete oriental, comprado em Damasco para presentear sua irmã, havia sido embrulhado separadamente e permanecia sempre à sua vista. Os funcionários do hotel, parentes e eu estivemos todos ocupados montando guarda durante dois dias.
Na manhã da partida, foi comunicado que o navio era muito grande para atracar no píer. Os passageiros, malas, presentes de último minuto e o tapete tiveram de embarcar em um grande barco a remo tripulado por quatro marinheiros. Minha mãe insistiu em sentar-se sobre o tapete, sem se importar com o que isso produziria na estabilidade da embarcação. Quando finalmente chegamos em segurança ao navio, ela solicitou que os marinheiros colocassem todas as malas e o tapete em sua cabine. Eles argumentaram que tudo o que não fosse necessário durante a viagem deveria ser depositado no porão. Para convencê-la, foi preciso que um oficial do navio intervisse, garantindo que nada seria roubado.
Hoje, o tapete está em um local de destaque na casa da minha filha Karen.
Chegava ao fim a longa viagem marítima. Durante o jantar da noite anterior ao nosso desembarque, descobrimos que o navio, o Vulcania, passaria perto da Estátua da Liberdade por volta das quatro horas da manhã seguinte. Foi tomada uma decisão espontânea de ver o famoso monumento por alguns dos passageiros mais jovens.
Assim, 16 dias após nossa partida de Beirute rumo à Nova York, muitos de nós, da Síria, Líbano e Palestina, nos mantivemos acordados por toda a noite para saudar a Estátua da Liberdade ao amanhecer.
Eu me lembro que era uma manhã clara.
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Foi o Egito que deu início à trilha do cinema árabe, seguido por Marrocos, Argélia e muitos outros países. A indústria cinematográfica do Cairo foi fértil durante os anos 1940, 1950 e 1960, e muitas produções daquela época são reconhecidas como clássicos. Mas aquelas décadas de dominação, quando a cultura visual egípcia era praticamente um sinônimo do mundo árabe, ajudaram e suprimir o desenvolvimento da produção cinematográfica em outras regiões.
O primeiro filme da Jordânia, Siraa fi Jerash (Luta em Gérasa), foi lançado em 1957. Financiado de forma independente por um grupo de amigos – um deles, Wasif Alsheikh, foi também o diretor – foi descrito parte como um filme de gângster, parte como um documentário turístico. Cenas de diálogo sem muito entusiasmo são intercaladas, algo incomum para um drama, com filmagens em locação que exibem atrações naturais e históricas da Jordânia.
Mas a inovação não se sustentou. Por mais de metade de um século, diretores estrangeiros filmaram no país, destacadamente David Lean (Lawrence da Arábia, 1962) e Steven Spielberg (Indiana Jones e a Última Cruzada, 1989). Diversos filmes árabes daquela época tinham conexões com a Jordânia, mas o apoio institucional para aspirantes a cineastas jordanianos era escasso. E assim permaneceu, até que uma série de eventos ocorridos ao acaso há cerca de uma década levou Nadine Toukan de volta à sua cidade natal, a capital do país Amã.
Em um dos luminosos e populares cafés de salada e sucos dos bairros de luxo de Amã, Toukan, de fala mansa e quarenta e poucos anos, faz uma pausa para pensar antes de responder à minha pergunta sobre sua carreira.
"Eu gosto de ver a mim mesma como uma criadora, uma conectora de pontos", diz.
Mencionada nos créditos como produtora ou produtora executiva em muitos dos filmes lançados na Jordânia ao longo dos últimos 10 anos, Toukan iniciou sua carreira em publicidade. Ela mudou de direção nos anos 1990 para ajudar a estabelecer o primeiro sucesso "pontocom" da Jordânia, um portal de notícias e entretenimento nos primórdios da rede chamado Arabia Online. Mas mesmo depois de mudar-se para a inovadora Dubai durante a explosão da internet entre 2000 e 2001, ela sabia que seu coração pertencia a outro lugar.
"Eu percebi que queria arregaçar as mangas e [trabalhar], em vez de só observar e comentar. É como eu vejo a mim mesma: uma colaboradora para a criação de possibilidades. Eu queria chegar lá", ela acrescenta.
De volta a Amã, a criação de conteúdo para a internet se articulou perfeitamente com a criação de conteúdo para as telas. Toukan discutiu a produção de um documentário sobre o antigo passado de Petra com o reconhecido fotógrafo jordaniano Rami Sajdi. Eles desenvolveram uma proposta, que enfrentou o grande ceticismo das empresas de produção de televisão e de cinema.
"Todos diziam: 'Ah, quem se importa? Vocês nunca vão conseguir fazer isso'. Para mim, isso foi fascinante", comenta Toukan.
Alguns podem ter desistido. Outros mais confrontadores podem ter começado uma briga. Mas essa alegre, silenciosa e tranquila personagem começou a buscar outro caminho.
Sua inquietação coincidiu com o planejamento realizado pelo governo jordaniano para a criação da Comissão Real de Cinema (Royal Film Commission, rfc), parcialmente destinada a atrair produções estrangeiras para o país, mas também para fomentar o desenvolvimento de uma indústria cinematográfica nacional. Toukan foi convidada a chefiar o programa da rfc, identificar e desenvolver talentos locais.
Ela sabia que iria começar o zero.
Uma de suas primeiras iniciativas foi estabelecer laços com o Instituto Sundance, uma instituição norte-americana sem fins lucrativos fundada por Robert Redford que se destina a cultivar talentos da produção cinematográfica. Em 2005, Toukan ajudou a levar para a Jordânia o laboratório de roteiristas da Sundance, no qual tutores e cineastas se reúnem em um retiro para refinar ideias.
"Eu estava na Inglaterra quando a minha irmã me falou sobre a Comissão Real de Cinema e que uma colega dela, Nadine Toukan, estava [envolvida]", lembra o diretor jordaniano Naji Abu Nowar quando nos encontramos na arejada varanda de uma empresa de produção cinematográfica de Amã.
"Eu queria fazer filmes árabes, mas jamais havia pensado que voltar para a Jordânia fosse uma opção. Eu não tinha a menor ideia de uma indústria de cinema lá. Conversei com a Nadine, e ela disse que eu deveria me inscrever para o laboratório de roteiristas Sundance Oriente Médio. Isso mudou completamente a minha vida. Trabalhar com aqueles autores me permitiu ter uma nova ideia de o que era ser um roteirista. Nadine é a razão de eu estar sentado aqui hoje."
O laboratório se tornou um evento anual, e neste ano ele comemora seu 10° aniversário na Jordânia. Abu Nowar pode apontar uma série de cineastas que se beneficiaram com a influência da iniciativa, incluindo Cherien Dabis, Sameh Zoabi e Najwa Najjar, participantes de seu primeiro ano. "Todos eles passaram" pelo laboratório, ele comenta.
"Wadjda [o primeiro longa-metragem saudita dirigido por uma mulher, Haifaa Al Mansour] passou por aquele laboratório. Qualquer que seja o filme árabe já premiado, ele passou pelo laboratório. Isso marca a qualidade do trabalho, e tudo isso se deve à Nadine."
Ao mesmo tempo em que a rfc começava a atrair diretores internacionais para a Jordânia, entre eles Brian de Palma (Guerra sem Cortes), Nick Broomfield (A Batalha por Haditha) e Kathryn Bigelow (Guerra ao Terror), ela também lançava um esforço conjunto com a Universidade Southern California em Los Angeles para o estabelecimento do Instituto Mar Vermelho de Artes Cinematográficas (Red Sea Institute of Cinematic Arts, rsica), que passou a oferecer o único programa de mestrado em Cinema do Oriente Médio.
Contudo, Toukan sentia as limitações de trabalhar em uma instituição do setor público. Ela deixou a rfc para enfrentar o ceticismo que inibia o apoio à produção cinematográfica local.
Toukan conheceu Amin Matalqa, um cineasta jordaniano residente na Califórnia, que lhe mostrou um roteiro que estava desenvolvendo com um amigo, Laith Majali. Para Toukan, isso parecia promissor. Ela começou a conversar com possíveis apoiadores empresariais da Jordânia e angariar suporte junto a seus contatos com roteiristas de Los Angeles.
O resultado foi Capitão Abu Raed (Captain Abu Raed), lançado em 2008 e aclamado pela crítica. Dirigido por Matalqa, o filme é uma história comovente sobre um idoso que trabalha como zelador no aeroporto de Amã e cuja vida se entrelaça com a das crianças locais. Além de vários prêmios internacionais, Capitão Abu Raed marcou a ascensão da Jordânia como um país de produção cinematográfica contemporânea.
"Por que demorou tanto tempo?", pergunta Toukan. "Permissão", ela afirma com um sorriso no rosto.
"Há uma mentalidade de esperar por permissão para criar", ela explica, acrescentando que a autocensura inibe uma licença individual de criar uma narrativa suscitando questionamentos como: "Minha visão é interessante o suficiente? Ela vale a pena? Eu sou boa o bastante?"
"Eu acho que esse é um fenômeno que atravessa todas as artes. Nós não esperamos a permissão de ninguém."
E essa não foi a única vez. Com o reconhecimento institucional e – o que talvez tenha sido ainda mais importante – crescentes redes de informais de apoio, outros cineastas jordanianos seguiram o caminho aberto por Capitão Abu Raed. Destacam-se entre eles Mahmoud Al Massad, cujo sombrio documentário urbano Reciclar (Recycle) de 2008 chamou a atenção internacional, e Mohammed Al Hushki, que realizou Cidades de Trânsito (Transit Cities), um filme de 2009 sobre uma mulher que volta a Amã depois de 17 anos no exterior e encontra sua família e a cidade mudadas. Cidades de Trânsito conquistou dois prêmios no Festival Internacional de Cinema de Dubai. O objetivo de Toukan de criar uma comunidade jordaniana de cinema viável, habilidosa e experiente foi se tornando algo cada vez mais concreto, auxiliado por um fundo de cinema administrado pela rfc – o qual forneceu um suporte fundamental a roteiristas e diretores locais –, além do apoio de indivíduos como o falecido Ali Maher, um membro do conselho da rfc e ativo defensor da arte criativa.
Fadi Haddad explica como ele se aproximou de Toukan em 2010, em sua graduação no rsica, com uma ideia que havia desenvolvido com a colega de universidade Nadia Eliewat.
A dupla tinha a expectativa de esperar "cinco ou seis anos" pela oportunidade de levar sua ideia para a grande tela, mas "Nadine leu o roteiro e [pediu para] ser a produtora executiva", lembra-se Haddad. "Ela tem essa energia que [significa]: 'Bem, vamos fazer isso acontecer'."
Nessa época, o resultado foi Quando Monaliza Sorriu (When Monaliza Smiled), uma comédia romântica sobre um improvável relacionamento entre uma séria trabalhadora de escritório jordaniana e um alegre funcionário egípcio de um café. Filmado em Amã e lançado em 2012, o filme foi um sucesso em toda a região.
"Eu não acho que [o filme] teria sido possível sem a Nadine", diz Haddad, diretor de Monaliza que hoje é professor de Cinema na Universidade Americana em Dubai.
Toukan "sempre esteve lá dia após dia para dar sua opinião e supervisão sobre elenco e locações", ele acrescenta. "Mas ela não tentou bancar a chefe. Ela dizia: 'Este é um projeto do Fadi; estamos o ajudando a fazer este filme'. Eu sempre me lembro disso."
"Monaliza gerou muita discussão na Jordânia", comenta Omar Razzaz, até recentemente chefe do conselho de administração do Fundo para o Desenvolvimento (kafd) do rei Abdullah iii, uma organização não governamental jordaniana dedicada ao fortalecimento da cidadania. O filme lidou com "vários tabus que têm a ver com questões sobre trabalhadores estrangeiros, identidade [e gênero]", ele diz. "A obra trouxe muita coisa à tona."
Razzaz comenta que estabelecer uma indústria cinematográfica jordaniana não gera apenas um impacto cultural. "De uma perspectiva puramente econômica, o valor agregado da indústria do cinema é enorme, pois ela possui diversos vínculos: música, design, moda, turismo, cultura. É possível divulgar todo um país através do que se produz [na tela]", afirma.
A família real jordaniana possui uma íntima conexão de longa data com o entretenimento das telas. Os pais do rei Abdullah se conheceram no set de filmagem de Lawrence da Arábia, e o próprio rei chegou a representar um papel sem fala em um episódio da série de televisão Star Trek: Voyager.
Mas Toukan, que nutre uma intensa agitação sob sua aparência leve e alegre, é impaciente com um modelo de produção cinematográfica que depende do patrocínio real ou estatal. Para seu próximo projeto, ela rompeu com esse modelo ao buscar com sucesso financiamento junto a diversas fontes empresariais locais do setor privado. O kafd também se tornou um apoiador financeiro fundamental para Theeb (2014), dirigido por Abu Nowar, pupilo de Toukan.
O último sucesso jordaniano – cujo título em árabe significa "Lobo" – acompanha um oficial do Exército inglês pelos desertos do norte da Arábia durante a Primeira Guerra através do olhar de um menino beduíno surpreendido em meio a eventos fora de seu controle. Theeb é um drama intimista, penetrante e bem observado de relacionamentos, descrito pela revista Variety de Hollywood como "um filme clássico de aventura da melhor categoria, e um daqueles raramente vistos hoje em dia… Um faroeste beduíno filmado no deserto jordaniano com beduínos de verdade".
"Nadine é alguém que merece a fama que tem", diz Razzaz, que a considera "muito motivada, muito criativa" e muito confiável. "É confortante saber que você está falando com uma pessoa que [não] vai abandonar a ideia no ano seguinte.
"O kafd sempre diferenciou retorno financeiro de retorno social", comenta Razzaz, observando que o sucesso de um filme pode ser medido de outras formas além do resultado de sua bilheteria. "Vimos rapidamente como [Theeb] estava mudando a mentalidade em [comunidades rurais] quanto à possibilidade de ser um verdadeiro ator e não somente um motorista de ônibus ou guarda de segurança."
Esse retorno social também pode ser visto nos sets de filmagem. Em 2006, menos de uma terça parte das equipes que filmavam na Jordânia era de fato jordaniana. Em 2014, dois filmes – Água de rosas (Rosewater), dirigido pelo apresentador norte-americano de programa de entrevistas Jon Stewart, e Kajaki, cuja direção é assinada pelo britânico Paul Katis – foram filmados na Jordânia com 70% a 80% das equipes compostas por jordanianos. Da construção do set ao desenho do figurino, o cinema está ampliando o conjunto de competências do país.
Bassel Ghandour teve sua oportunidade em Capitão Abu Raed, em que foi assistente de produção de Toukan. Com isso, garantiu sua participação em Guerra ao Terror e transformou essa experiência na coautoria do roteiro de Theeb. Agora, ele conduz sua própria empresa de produção em Amã.
"Ajudar a cultivar um sistema com pessoas que não sabiam nada – tudo o que elas tinham era a ambição de trabalhar com cinema – é algo que realmente exige visão", ele diz sobre Toukan.
Houve – e ainda há – obstáculos: o rsica fechou, e nenhum filme jordaniano conseguiu ser lucrativo até agora. Mas Theeb está no caminho certo para mudar essa realidade, tendo capitalizado o sucesso que conquistou em festivais ao ponto de garantir lançamentos gerais em 2015 no Reino Unido e nos Estados Unidos, os dois maiores e mais importantes mercados de cinema.
Os benefícios mais amplos deixam muitos animados.
"Eu certamente vejo um retorno concreto", diz Saad Mouasher, vice-presidente do conselho do Jordan Ahli Bank. Um dos apoiadores financeiros de Theeb, ele manifesta abertamente seu apoio ao trabalho de Toukan nesse mercado.
"Quando você produz um filme, investe em recursos locais. O cinema é uma forma para que nós do mundo árabe possamos reivindicar o nosso legado", ele diz. "Eu investiria novamente. Até que esse mercado atinja a maturidade, problemas como apoio à arte, liberdade de expressão e criação de nossas próprias narrativas têm mais prioridade do que o retorno [financeiro]. Culturalmente, isso não tem preço. Nadine é uma das catalisadoras da mudança positiva na Jordânia."
Entre goles de chá em nosso movimentado café, pergunto a Toukan se ela está tentando mudar seu país. Depois de uma pausa, ela balança a cabeça e diz: "Sim, estou. Nós estamos. E é um grande prazer fazer isso. Essa é uma das razões que me fazem acordar com entusiasmo todas as manhãs – a aventura de fazer isso".
"Você é capaz de ver a pavimentação" do caminho para o sucesso, ela diz. "Isso me dá enorme inspiração e motivação. Um movimento de cinema transformará a Jordânia cultural e politicamente – a experiência de ir ao cinema e estar entre pessoas estranhas, rir juntas, chorar juntas, orgulhar-se juntas. Isso é extremamente importante para a forma como uma cultura se sente bem consigo mesma."
Ela mantém seu compromisso de romper estruturas e abrir mais caminhos criativos para a Jordânia e também para os jordanianos.
"Meu dever é criar entretenimento de qualidade, e eu adoro me aventurar pelo desconhecido", confessa. "Se a indústria cinematográfica da Jordânia já estivesse estabelecida, eu não sei se ficaria tão entusiasmada. Estamos diante de uma oportunidade enorme e ilimitada. E é isso que realmente me entusiasma. Menos regras!"
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O museu municipal no hoje seco e empoeirado porto de pesca de Aral exibe uma obra de arte que causa surpresa: um mural homenageia pescadores locais que, em 1921, ajudaram a salvar a Rússia da fome enviando a Moscou 14 vagões carregados de peixe. Perto da obra, encontra-se uma fotocópia da carta datilografada de Lênin em agradecimento àqueles pescadores, além de um busto de bronze de Tölegen Medetbayev, o herói de Aral desse grande esforço.
Essa obra causa surpresa porque aqueles 14 vagões repletos de carpas, esturjões, bremas e outros peixes de água doce vieram da mesma parte do Mar de Aral que, desde a década de 1980 até relativamente há pouco tempo, se tornou salgada demais para permitir a sobrevivência de qualquer uma dessas espécies.
Ela é surpreendente também porque, tendo ouvido por tantos anos sobre a morte do Mar de Aral, foi animador saber que sua parte setentrional – hoje um mar interior com apenas 10% do que já foi, apenas um pouco maior que o Sri Lanka ou o estado norte-americano da Virgínia Ocidental – está em processo de reversão do declínio de suas águas: lentamente, o Mar de Aral do Norte está retornando à vida.
O local mais próximo de Aral servido por companhias aéreas é Qyzylorda, uma capital provincial homônima com aproximadamente 190 mil habitantes e a cerca de 90 minutos de voo em direção sul de Astana, capital do Cazaquistão. Depois de tomarmos um voo que partiu no final da tarde, minha tradutora Dinara Kassymova e eu chegamos bem a tempo de embarcar no trem noturno para Aral. Dividimos nossa cabine com uma jovem chamada Aynura, que retornava à sua casa com seus dois filhos pequenos, Islam e Muhammad. As janelas estavam sujas demais para nos permitir ver muita coisa do lado de fora.
À medida que o trem da época soviética chacoalhava em direção norte ao longo da estepe, percebi que a maioria dos passageiros que não dormia se reunia do lado de fora de nossa cabine – uma das últimas do último vagão – para fumar cigarros sem filtro enquanto apreciava a noite por uma porta aberta. Em busca de ar fresco, caminhei para o lado oposto, passei por um cozinheiro que fritava cebolas despreocupadamente na pequena cozinha do vagão-restaurante e por um homem idoso sentado diante de sua esposa, que descascava batatas para seu jantar.
No vagão-restaurante, que tinha todas as mesas decoradas com rosas vermelhas de plástico, uma garçonete com dentes de ouro chamada Shireen serviu carne com legumes. Ela disse que, antes de começar a trabalhar na ferrovia, ensinava jornalismo no Uzbequistão, sua terra natal. De todos os passageiros, os únicos que não pareciam ser locais eram uma jovem repórter de televisão e seu câmera, que haviam sido enviados para cobrir o lançamento de um foguete às 3 da manhã no cosmódromo de Baikonur, localizado entre Qyzylorda e Aral.
Depois de oito horas, perto do amanhecer, chegamos a Aral, que um dia foi um próspero centro de pesca, mas é agora uma pequena cidade abatida. Um representante local nos encontrou na estação e, juntos, caminhamos alguns quarteirões até o modesto centro da cidade.
"Quando o mar começou a secar, claro que todos ficaram pessimistas, e as pessoas começaram a se mudar para outros distritos", explicou Tanirbergen Seytzhanovich Darmenov, o vice-akim (prefeito) da cidade. "Esse foi um grande problema para o Cazaquistão."
Kristopher White, professor adjunto de Economia da Universidade kimep em Almaty, a maior cidade do Cazaquistão – concordou. Ele é um especialista no Mar de Aral, chamado de Aral Teñizi em cazaque e Aralskoye Morye em russo.
"Isso é certamente um desastre ambiental. Estamos falando do [que um dia foi] quarto maior mar interior do mundo em volume de água", afirmou White. Desde 1960, ele explicou, quando a pesca comercial capturava mais de 43 mil toneladas, o Mar de Aral perdeu mais de 88% de sua superfície e 92% de seu volume. Em 1996, foram pescados somente 547 toneladas de peixe, e muitos deles contaminados com pesticidas. Nesse período, a salinidade saltou de 10 partes por mil (ppm) em 1960, essencialmente água doce, para 92 ppm em 2004, cerca de três vezes a salinidade da maioria dos oceanos.
Ele disse que isso arruinou o habitat dos peixes e, com a diminuição do mar, "houve também o que chamamos de dessecação, ou a invasão de desertos. Uma paisagem desértica inteira substituiu grande parte do que antes era mar". Além disso, essa transformação tem representado um desastre humanitário, acrescentou, pois o desaparecimento do mar trouxe desemprego, miséria e emigração.
Darmenov, 58, não hesitou em culpar diretamente a urss, cujos cientistas agrícolas e engenheiros civis transformaram a estepe semiárida em campos de algodão e trigo por meio de irrigação, o que exigiu a construção de cerca de 30 mil quilômetros de canais, 45 represas e mais de 80 reservatórios.
"Os engenheiros soviéticos não pensaram nas consequências desse empreendimento. Eles sabiam que o lago secaria algum dia, mas não se importaram com isso. Não havia democracia; todos tinham medo de falar", disse Darmenov. "Alguns cientistas advertiram que isso aconteceria, mas ninguém os escutou. Em 1985, as pessoas finalmente começaram a falar, mas já era tarde demais."
Até 2000, nove anos depois do colapso da União Soviética, o então imponente lago era separado em duas partes desiguais: o Mar de Aral do Norte no Cazaquistão e o Mar de Aral do Sul, muito maior, em grande parte no Uzbequistão. Hoje, tudo o que restou do Mar de Aral do Sul é uma porção estreita de água em forma de lua crescente ao longo da margem ocidental, e especialistas preveem que ele desaparecerá, já que não possui nenhuma ligação com o rio Amu Dária que antes o abastecia.
Em outubro de 2014, a Administração Nacional Aeronáutica e Espacial dos eua (nasa) divulgou imagens do Mar de Aral capturadas por seu satélite Terra. Estas foram umas das primeiras a mostrar toda a parte leste da bacia do Mar de Aral do Sul completamente seca, uma visão dramaticamente diferente de uma imagem similar tirada no ano 2000. "É a primeira vez que a bacia oriental secou completamente na época moderna", disse Philip Micklin, geógrafo e especialista em Mar de Aral da Universidade Western Michigan. "E é muito provável que seja a primeira vez que ela tenha secado completamente em 600 anos, desde a dessecação medieval associada ao desvio do Amu Dária para o Mar Cáspio."
Com uma população de pouco mais de 30 mil habitantes, Aral é a maior cidade da margem nordeste do Mar de Aral do Norte, e cerca de 73 mil pessoas seguem vivendo na região de seu entorno. Aqui, explicou Darmenov, o governo cazaque e o Banco Mundial devem trabalhar conjuntamente com o rio Sir Dária para salvar o mar. O rio é a única fonte de reabastecimento do mar, e sua sorte ainda é em muito determinada pelos padrões cíclicos de chuva, além do derretimento da neve da distante cordilheira de Tien Shan.
"Não se trata de dinheiro nem do que o homem é capaz de fazer. Tudo depende da natureza", disse Darmenov. Seu escritório é decorado com um retrato em moldura dourada do presidente de 75 anos de idade Nursultan Nazarbayev, que comanda o Cazaquistão desde 1989, dois anos antes de o país declarar sua independência da União Soviética. "Somos muito agradecidos por nosso presidente não ter se esquecido desse problema e por estar fazendo todo o possível para reviver o mar."
O declínio do mar é narrado com incrível detalhe no museu municipal de Aral, localizado na rua Tokey Esetov, muito perto da rua Abulkhair Khan, via principal da cidade. Fundado em 1988, o museu cobra uma entrada de 200 tenge (cerca de US$ 1,10) de cada um de seus 15 mil visitantes anuais.
Aqui, armazenados em três mostruários cobertos com vidro, se encontram dentes de animais, conchas, pedaços de vidro e fragmentos de cerâmica – todos objetos encontrados no leito do mar depois que ele começou a secar na década de 1970. Há também um mapa de 1849 de um Mar de Aral claramente muito maior, creditado a A. Butakoff, comandante da Marinha Imperial Russa, além de uma pintura feita em 2003 que, de uma forma um tanto nostálgica, mostra como era o porto de Aral nos anos 1960.
Por mais distante que possa ser o museu, seu livro de visitas está repleto de comentários de visitantes holandeses, franceses, espanhóis e norte-americanos. Mas, para o diretor do museu Madi Zhasekenov, o espaço não se destina apenas a turistas.
"Queremos mostrar à nossa geração como a vida costumava ser aqui", disse Zhasekenov enquanto trancava sua coleção de artefatos antes de sair para o almoço.
O homem de 53 anos de idade caminhou pela rua até um parque onde, quando jovem na década de 1970, se encontrava com seus amigos para conversar. Os bancos de concreto de onde eles observavam a margem do Mar de Aral ainda estão lá, mas já não há nenhum mar para ver. Em vez disso, as crianças se divertem em um carrossel enferrujado. O sentimento de nostalgia e perda era evidente.
"Meus filhos não querem viver em Aralsk," disse Zhasekenov em voz baixa, utilizando o nome da cidade em russo, "mas eu cresci às margens do mar. Eu não quero ir embora. Este é o meu lar, e eu acredito que o mar voltará."
Em seguida, ele me convidou para almoçar em sua casa de madeira, localizada do outro lado da rua do antigo Hotel Aral. Para a minha surpresa, o curador do museu abriu a porta de uma dispensa, sentou-se e começou a tocar um velho e decrépito piano. Nenhuma de suas 88 teclas estava afinada. Ele então retirou um enferrujado trompete alemão sem bocal e fingiu tocá-lo.
É fácil entender por que Zhasekenov sente saudade dos velhos tempos. De acordo com um marco histórico, em 1976, a cidade exportou 5.000 toneladas de lã, 340 peças de lã, 3.000 peles, 1.500 pares de luvas de lã e 1.200 calças de lã. Hoje em dia, os turistas que passam por aqui podem subir a bordo do Lev Berg, um barco de pesca azul brilhante, e observar o leito do lago desertificado. Dois guindastes enferrujados, sem uso desde o início da década de 1980, jazem do outro lado do horizonte plano.
Mas as águas, que no início dos anos 2000 haviam recuado e se afastado 100 quilômetros de Aral, agora se encontram a apenas 20 quilômetros de distância da cidade, e estão se aproximando cada vez mais.
"Nós herdamos o problema do Mar de Aral da União Soviética, mas assim que nos tornamos independentes, colocamos em prática programas especiais", comentou Zhanbolat Ussenov, diretor do Conselho da Eurásia sobre Assuntos Estrangeiros e ex-porta-voz do Ministério de Relações Exteriores do Cazaquistão.
"Claro que sabemos que não poderíamos salvar o mar sozinhos, tanto do ponto de vista financeiro como técnico. Por isso, criamos um fundo internacional para salvar o Aral", explicou Ussenov. "Convidamos o Banco Mundial e alguns países para nos ajudar a combater esta catástrofe ambiental. E com grande alegria, hoje posso dizer que o Mar de Aral está lentamente retornando a seus limites originais."
O sonho de salvar integralmente o Mar de Aral – Norte e Sul – é irrealista, dizem especialistas que conhecem bem a região. Mas todos parecem concordar que a primeira etapa do projeto a que se referiu Ussenov – oficialmente conhecido como Projeto de Controle do Sir Dária e do Mar de Aral do Norte, ou synas-1, tem sido até agora um sucesso.
Ahmed Shawky M. Abdel-Ghany, especialista sênior em recursos hídricos da Europa e Ásia Central do programa Prática Global da Água do Banco Mundial, tem gerenciado o projeto a partir de seu escritório em Washington desde o final de 2010. Ele disse que o synas-1 possui o valor total de US$ 83 milhões e incluiu um subprojeto para a restauração do Mar de Aral do Norte.
"Não estamos falando de todo o Mar de Aral, mas apenas de sua parte setentrional, que reside completamente no Cazaquistão", afirmou o engenheiro civil egípcio, que já trabalhou em 20 países ao longo de sua carreira de 12 anos no Banco Mundial.
"Ele disse que um elemento fundamental do synas-1, a construção em 2005 do dique Kokaral de 13 quilômetros de extensão, elevou em cerca de 50% o volume da água do Mar de Aral do Norte em três anos.
"A parte setentrional do Mar de Aral estava inicialmente [em 2005] 38 metros acima do nível do mar. Agora, ela chega a atingir 42 metros", afirmou. "Consequentemente, a salinidade do Mar de Aral do Norte se reduziu pela metade. Mas todos esses números estão sujeitos a variáveis hidrológicas que oscilam a cada ano."
Ele disse que a prova do sucesso até este momento não reside apenas na diminuição da distância entre a cidade de Aral e a margem do mar, mas também na pesca realizada na área, que duplicou ou triplicou seus resultados nos últimos anos. "O governo e os doadores esperam que, com as próximas etapas do synas-1, a parte setentrional do Mar de Aral se aproxime ainda mais", afirmou.
Mas até mesmo 20 quilômetros parecem uma eternidade quando a única forma de percorrer essa distância é utilizando um veículo de tração nas quatro rodas sobre uma estrada de terra que desaparece no meio do nada logo após os limites da cidade.
Somente essa viagem exigiu cerca de duas horas, levando-nos a passar pelo seco vilarejo de Mergensai e por dispersas e pesadas traineiras de pesca em ruínas, abandonadas sob o sol escaldante e cobertas de pichações.
Antigamente, esse cemitério de barcos era a principal atração do então chamado "turismo escuro": fotos de camelos vagando pelo deserto com essas embarcações ao fundo estão à mostra no museu de Aral, e elas foram exibidas em revistas de viagem para divulgar a difícil situação do Mar de Aral. Os camelos ainda estão lá, ainda que, nos anos recentes, a maioria dos barcos tenha sido desmantelada em sucata e vendida à China.
Os visitantes que conseguem chegar às margens do mar provavelmente não encontram uma movimentada atividade pesqueira, mas certamente há mais atividade hoje do que até recentemente.
Uma alma resistente é Marat Karebayev, que sai em seu barquinho azul de madeira todos os dias por volta das sete da manhã e não costuma voltar antes das cinco da tarde. Ele vem pescando há cinco anos e disse ganhar de 10 a 20 mil tenge (cerca de US$ 55 a US$ 110) por dia. Desse valor, ele precisa descontar o preço do combustível (aproximadamente 800 tenge por 10 litros), além da rede de pesca (60 mil tenge), que deve ser substituída a cada ano.
"O mar está agora muito mais perto do que estava há 10 ou 15 anos", disse Karebayev, 31, vestido de macacão azul-marinho, casaco preto e boina quadriculada. "Hoje eu pesco mais, e os preços estão mais altos."
Atualmente, 22 variedades de peixe são exploradas comercialmente no Mar de Aral do Norte, e a produção da pesca está se aproximando a 6 mil toneladas por ano, disse o vice-prefeito Darmenov. Ele acrescentou que esse número poderia subir para 30 mil toneladas anuais se os projetos atualmente financiados pelo Banco Mundial forem bem-sucedidos.
Seu otimismo é compartilhado por Adilbek Aymbetov, diretor da unidade de processamento de peixe de Aral, localizada nos limites da cidade. A fábrica tem operado há aproximadamente cinco anos. Cerca de 25 pessoas trabalham lá embalando carpas, lúcios e outros peixes para consumo local e exportação a 28 países da União Europeia.
"No ano 2000, havia muito desemprego, mas as coisas estão melhorando", comentou Aymbetov. Em 2013, ele disse que foram processadas 300 toneladas de peixe e exportadas aproximadamente 100 toneladas, em comparação com as 215 toneladas produzidas e 97 toneladas exportadas do ano anterior.
Em 2011, Abdel-Ghany do Banco Mundial visitou o Cazaquistão para concluir o relatório de avaliação do synas-1 e planejar a segunda etapa do projeto, o synas-2. Esse esforço de sete anos e US$ 126
milhões possui US$ 107 milhões financiados pelo próprio Banco Mundial, cabendo o restante ao Cazaquistão.
"O governo está realmente empenhado em começar assim que possível", disse Abdel-Ghany, observando que o synas-2 inclui a reabilitação dos deltas do lago, o desenvolvimento de incubadoras de peixes, a modernização das represas e o ajuste dos meandros do rio para aumentar o fluxo de água.
Abdel-Ghany previu também uma terceira etapa. "É quando realmente será possível ver desenvolvida toda essa parte inferior da área da bacia do Sir Dária", afirmou. "Depois, e somente depois, poderíamos dizer que este terá sido um dos maiores projetos ambientais do mundo."
Sagit Ibatullin, ex-presidente do Conselho Executivo do Fundo Internacional para Salvar o Mar de Aral (International Fund for Saving the Aral Sea, ifas), disse recentemente à imprensa cazaque que o plano da organização composta por cinco países para trazer de volta todo o Mar de Aral – Sul e Norte – se fosse integralmente implementado, custaria até US$ 12 bilhões. O funcionário cazaque, nomeado pelo presidente Nazarbayev, comandou o ifas de outubro de 2008 a agosto de 2013.
White, da Universidade Kimep, apontou que, ainda que a maior parte do plano do ifas tenha se concentrado mais no Mar de Aral do Sul, o esforço do Cazaquistão de reviver a porção setentrional do mar "tem sido aclamado como um sucesso do ponto de vista ambiental, e acho que é justamente por isso. A parte norte do Mar de Aral retornou um pouco – bem distante do que era antes de 1960 – mas sem dúvidas ela foi estabilizada e agora está retornando".
Os pescadores, engenheiros e banqueiros tiveram um incentivo inesperado no ano passado: a banda britânica Pink Floyd, que desde sua origem em 1965 tem denunciado a alienação, o comercialismo e a degradação ambiental. O videoclipe de 2014 de sua música "Louder than Words" filmou habitantes de Aral e vilarejos próximos tendo como pano de fundo desertos e barcos abandonados. Na última contagem, o vídeo havia sido visto 7 milhões de vezes.
Aubrey Powell, diretor de criação do Pink Floyd, disse recentemente à Radio Free Europe/Radio Liberty que, apesar de a imagem surreal de barcos encalhados no deserto ter sugerido um vídeo sobre desastre ambiental, "não se trata tanto do desastre – e foi escrito sobre isso muitas e muitas vezes – mas sobre o que isso significa para geração mais jovem".
Ninguém sabe quantos fãs o Pink Floyd tem em Aral. Mas White, da Universidade kimep disse que, durante a mais recente visita que fez à região, ele e sua equipe ambiental viram novas casas sendo construídas; e dentro das casas, ele viu novos televisores e geladeiras.
"Passamos por toda a parte norte do Mar de Aral e conversamos com as pessoas em vilarejos muito remotos, alguns deles só recentemente abastecidos com energia elétrica", comentou o professor. "Há uma perspectiva geral positiva para o futuro, o que acho que não vinha acontecendo no Mar de Aral há muito tempo."
Nativo de Aral, Yerken Nazarov, 31, parece concordar com essa nova visão positiva. Sua avó era uma vendedora de peixe que viveu tempo suficiente para comemorar seu centésimo aniversário.
"O que precisa acontecer para trazer de volta o mar?", perguntei a Nazarov em minha última tarde na cidade. Ele refletiu por um segundo e me respondeu: "Precisamos de esperança".